segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

A paz que eu não quero seguir admitindo



(Ao som de “Minha Alma” na voz de Maria Rita)

Pode me dizer o que você quiser, cara. Pode me acusar do que você quiser, me apontar com o dedo na cara o defeito que mais te incomodar. Pode me arrebentar de porrada, pode me jogar pra fora de casa. Pode me encher de pipoco, me encher de macumba, de difamação, me caluniar, me enrabar, me cortar e perfurar inteiro até morrer de tanto sangrar.

Pode maldizer meu pai minha mãe minha família inteira, pode me deixar esquecido, me ignorar. Pode tirar tudo que eu tenho, ou tudo aquilo que um dia eu achei que possuía sem nunca ter me dado conta de que na vida a gente não tem nada, nem a nós mesmos quando a água bate na bunda. Só caos e descontrole do caos.

Pode cortar meu pau fora, pode cortar minhas duas mãos e meus dois pés, pode deformar minha cara com ácido sulfúrico. Pode me deixar cego, me deixar paralítico, sem uma orelha. Pode me arrancar o nariz, deixando só as cavidades negras apontando sempre em frente, sempre uma boa caverna para o bom inseto que entrar ali dentro e depositar quantos forem os ovos necessários pra que nasçam larvas suficientemente famintas e de número bastante pra comerem meu cérebro inteiro.

Pode me amputar a alma, que eu já não preciso mais dela.

Pode me dar uma bengala, me chamar de velho, apagar minha memória. Pode discursar com ar de cientista e negar tudo aquilo em que um dia eu acreditei. Pode queimar todas minhas roupas, minhas fotografias, meus documentos, minha casa, minha delicadeza, minha sensibilidade. Pode queimar tudo que estiver de alguma forma relacionado a mim. Pode, inclusive, queimar todas as pessoas que a mim se ligam ou são relacionadas, que no fundo no fundo, eu já não preciso mais delas.

Não que um dia eu tenha precisado e seja egoísta o suficiente pra soltar um comentário desses. fNa verdade, não preciso mais como nunca precisei, como constantemente deixei de precisar, como vim exercitando repetidamente a desnecessidade de me importar com elas.

Pode piorar, pode me tirar a água do banho, a comida da boca e os pêlos do corpo. Pode arrancar meus ideais, meus sonhos, minhas expectativas, minhas tentativas, meus erros e meus acertos, e tudo aquilo que talvez um dia tenha me feito bem. Só fé que não vai poder tirar, porque afinal, fé eu nunca tive.

Pode me deixar seco e esturricado ali no sol prum urubu vir e me comer naquele momento mais caótico da nossa vida, o momento da quase-existência, o momento que a gente está a um pé de ser e a um pé de nada, a um pé de todas as coisas coloridas e a um pé de tudo aquilo que não tem nome, porque não é; aquela linha tênue e nauseabunda entre um piscar de vida e um arregalar de morte.

Aproveita que vai me tirar tudo e leva junto esse sangue maldito que grudou nas minhas mãos. Eu já to fodido mesmo. Agora eu entendi porque dizem que o primeiro banho depois que você mata alguém parece o primeiro banho da sua vida. Eu acho que é a adrenalina, cara. Te endurece inteiro, cê fica parecendo uma borracha que inchou de algum líquido maldoso, depois ficou exposta tanto tempo ao calor e à secura que encolheu, encolheu, e começou a rachar todinha, todinha.

Sai, sangue de merda! Tsc... Esse banho é uma delícia, na cadeia não vai ter mais mamata de aguinha quente. Nossa, aquele babaca do padeiro ainda disse que eu precisava de paz no meu coração. Que paz é essa que eu preciso ter no meu coração, seu velho infeliz de bosta! Que tipo de paz é essa que me mandaram cultivar e conservar, como se eu fosse um capacho do sistema, uma mula que carrega um letreiro nas costas.

Eu não quero essa sua paz coletivizada, essa sua paz senso-comum, paz cheia de medo e de obediência, paz que virou paz porque foi incapaz de virar algo melhor. A minha paz é a tranqüilidade da minha alma em saber que o Rogério não existe mais. Essa sua paz que não é a minha paz eu não vou continuar seguindo, não vou compactuar com esse exercício arbitrário de poder discursivo, paz que é liberdade, consumo, concorrência, dinheiro, arma, guerra e podridão.

A minha paz é mais simples, a minha paz é luz num mundo negro de falseios. Eu não quero sua paz, eu quero a minha paz. E agora eu a tenho. Seu mundo, padeiro, seu mundo sustenta uma paz muito mais sangrenta que a minha. Seu mundo, seu sistema, seu complexo social, sua cultura, sua moral, suas leis e seu direito, seus achismos, sua economia, sua patifaria, sua psicologia frustrada, sua estética de celulites e coca-cola, sua filosofia de acaso, sua pinga no boteco, seu torresmo cheio de óleo, e mais todo o monte de jogos e truques sem os quais você e o resto não conseguem viver, não me trazem paz porra nenhuma!

É foda estudar 5 anos de ciência política, teoria do estado, constituição, genealogia da moral, história mundial, direitos humanos, conviver com aquele monte de molecada com síndrome de pequeno poder, depois enfrentar anos e mais reanos de cursinho para concursos, que ridículo, esses eu perdi a conta, trocar de método, reprovar na parte teste, reprovar depois na parte aberta, depois na entrevista, putaquepariu-passei!, depois de prestar 7 vezes vou finalmente abocanhar essa vaga de juiz.

É foda encarar o mundo de frente, tentar fazer as coisas melhorarem, lutar pra si, pelos outros e até por meia dúzia de zé-mané que eu discutiria se realmente mereceram a minha luta. É foda SENTENCIAR, padeiro de merda. Cada sentença é duas noites sem dormir, trinta segundos a menos de vida, uma pancada mais dolorida no coração, uma gota a mais de stress e um tendão a mais inflamando, uma infelicidade a mais, uma dúvida a mais, uma perda de identidade a mais.

Tinha dia que eu dava tanta sentença que chegava em casa e ficava me olhando no espelho, pasmado, chocado, constipado, prostrado, pensando como eu podia tomar decisões acerca do mundo que me rodeava se, em tanto tempo de vida, nem mesmo tinha conseguido me conhecer enquanto eu-mesmo. Você não sabe o que é ter lepra no espírito. Não sabe o que é ver os sentimentos e as expectativas definharem gradativamente, dia após dia, de pouquinho em pouquinho, e a única arma sobrando pra usar contra essa desgraça ser seu próprio sorriso amarelado e sem graça aparecer na frente do espelho.

É foda estudar a lei, achar que entende a lei, conseguir interpretá-la e aplicá-la de um jeito mais ameno, mais paciente, calmo, justo, sem, é claro, perda de combatividade. Eu já fui você um dia, eu já acreditei no sistema, no meu ofício, num direito como instrumento-de-transformação-social, nossa!, viva ao Gramsci! Mas agora na minha cabeça, a paz que vem desse sistema não é mais uma paz que quero conservar pra tentar ser feliz, essa paz eu não vou seguir admitindo.

Coitado do Gramsci, quem tava certo era o Falcão do Rappa.

Sabe o que aconteceu, padeiro? Eu tive a minha chance, que todo homem, eu tenho certeza, existindo deus ou não, ganha um dia. Eu conheci uma professora de literatura que se chamava Beatriz, que se tornou um dos seres humanos mais interessantes que já tocaram o meu conhecimento, a mulher mais bela com a qual cheguei a me deitar, a mãe mais inovadora que eu poderia ter escolhido.

E eu, Seu Padeiro, que era até então um cara desacreditado, quase se rendendo perante esse seu mundo que um dia eu cheguei a acreditar e inclusive um mundo pelo qual eu lutei e lutei até me cansar, recebi o encanto da minha vida. Nasceu a Clarice. Criei a Clarice até ela fazer 15 anos, exatamente, porque no dia seguinte do seu aniversário – tão bonito, que nos deu tanto trampo conseguir montar e pagar, mas que valeu cada moedinha e cada instante gasto quando vi o brilho dos olhos dela, – ela foi achada morta.

Porque alguma pessoa, igual a mim e a você, trabalhadores, vítimas de si mesmos e de sua história, vítimas de um sistema econômico-político torpe e selvagem, agressivo, guerra de todos contra todos, vítimas das circunstâncias, da eventual descarga hormonal que rolar, uma pessoa com dramas e sortes, idas e vindas, com a sua parcela de construção do mundo, estuprou a Clarice.

Fiquei mal até descobrir o nome, porque quando descobri não parava de emitir incessantemente na minha cabeça aquele som, som que representava a sua pessoa, de maneira a canalizar todo o meu ódio para poucos fonemas, poucos contornos e pouca imaginação.

Tudo no mundo faz sentido até você se foder, padeiro.

Quando você se fode inteiro, a resposta-reflexo que o mundo recebe é mais um desajustado que vai aparecer no noticiário.

Mas sabe que só agora eu entendi? Depois de tantas sentenças, de tirar tanta pessoa podre da cadeia, de colocar tanto inocente lá dentro, de chorar tanto, de estudar tanto, de viver tanto minha profissão que era de certa forma a fé que eu nunca tive, depois de tantas visitas à cadeia, de ter sido assaltado tantas vezes, de ter conversado aquele dia com o Pedro, que desistiu de me assaltar e me pediu desculpas, depois de tantos sexos mal-feitos com a Beatriz por causa do stress tenebroso que rolava por cada centímetro do meu eu-consciente e cada parcela das minhas entranhas, eu entendi, Seu Padeiro.

Você não se importa mais com as circunstâncias nem conseqüências de um ato brutalmente animal porque entende que toda essa construção sistemática em forma de sociedade é uma máscara para nosso instinto animalesco, para nossa sorte grotesca, para o caos que nos é natural e inerente, para a loucura pura e plena de sermos o bicho mais aniquilador que existe.

Um dia eu acreditei e lutei por tudo aquilo que faz sentido. Pra mim também fazia.

É fácil acreditar e lutar, até o momento em que perdemos o controle sobre nós mesmos.

Agora eu entendo. Se arrepender depois de fazer uma grande merda É possível. A gente nunca vai controlar, seja lá qual ferramenta resolvamos usar, essa animalidade toda reprimida que está dentro de nós, perpetuada e carregada como um fardo, como a negação de uma podridão que nos é toda nossa e natural, sem a aceitação necessária para que sofrêssemos menos do que sofremos hoje, condição débil a do ser humano.

E depois de tudo isso, sem me conhecer nem uma centelha, vem querer me falar de paz? Ah, vai se ferrar! Paz é isso, paz é eu aceitar o prazer que nasce a partir da vingança, é deixar essa coisa maravilhosa – que seu sistema-imposto-pelo-qual-já-lutei-tenta-destruir – inundar todo o meu corpo e a minha mente.

A diferença é que não me arrependo. Me arrependesse e não estaria em paz.

Mas não se preocupe, padeiro, é insegurança jurídica-política-social demais o homicídio enquanto realidade. Não vou viver à margem do seu sistema. Não tenho mais idade nem pique pra isso. Vou até a delegacia depois do banho, fique tranqüilo.

Só não me venha falar de paz antes do primeiro banho da sua vida.