Produto de sociedades despedaçadas, o intelectual é sua testemunha porque interiorizou seu despedaçamento. É, portanto, um produto histórico. Nesse sentido, nenhuma sociedade pode se queixar de seus intelectuais sem acusar a si mesma, pois ela só tem os que faz. (Jean-Paul Sartre)
O engano milenar do teatro é que fez do palco um espaço exclusivo de atores e de atrizes. Por que nós, os não-atores, as não-atrizes, não teremos também o direito de representar? Objetará alguém que não dominamos o meio de expressão teatral. Protesto: dominamos, sim. Que fazemos nós, desde que nascemos, senão teatro, autêntico, válido, incoercível teatro? (Nelson Rodrigues)
Quero achar que podemos promover saltos qualitativos em nosso convívio com o mundo. Quero acreditar que posso me reconhecer e me reconsiderar perscrutando o meu passado. Há quem acredite que nosso passado não está em nossas costas, mas em nossa frente, diante de nossos olhos. Há quem acredite que o futuro não se projeta diante dos nossos olhos – mas permanece ocultamente ocluso em nossas costas.
Se hoje sou assim, sou mero fruto do acaso. Quando apareço hoje ao mundo, não expresso mais que a soma de todas as minhas contingências do passado. A vida humana se inicia com um acaso estatístico possibilitado pela impossibilidade da vida: o que vemos diante do espelho é uma dentre as milhões de possibilidades genéticas que herdamos de nossos pais – é assim que todas as outras se tornam impossíveis. Além disso, uma das milhões de possibilidades culturais que herdamos de nossa sociedade - que é uma em milhões.
Cada momento que me procuro nas linearidades da vida, automaticamente me perco. Cada momento em que tento fundamentar minhas escolhas em impulsos libidinais, vontade de poder ou luta de classes, percebo com mais intensidade que meus atos continuam sendo unicamente revestidos de pura fé. E assim me descubro um metafísico às avessas. E descubro que não sou mais ou menos humano que todos os outros mundanos que vagam errôneos e errantes. Explico: nenhuma das escolhas que fiz tomando como mote a racionalidade trouxeram-me os fins e objetivos prometidos. E assim triunfa o capitalismo – o império da razão é uma farsa.
Se decido traçar em palavras fugazes e frágeis a minha identidade, é porque quero fincar neste mundo algo que não sou. Porque tudo aquilo que somos automaticamente nos escapa. Explico: todos os discursos capazes de nos caracterizarem como um ser no mundo, cuja posição social e política está bem delineada, servem para nos anularem. A emancipação e a libertação não residem onde costumamos procurá-las. Entre existir a vida e existirmos nela, na brecha cósmica entre o ser e o nada, na lacuna identitária que se amplia entre um projeto existencial e outro – talvez estejamos ali mesmo, no não dito, naquilo que não pode ser falado, naquilo que não estará escrito ou registrado, no que se perde, naquilo que efetivamente é de maneira desinteressada.
Eu me encontro aqui: a soma de todas as coisas que fiz e que fizeram comigo, certas ou erradas, tristes ou banais, profanas ou sagradas, morais ou antiéticas, previsíveis ou utópicas – é esta disfunção matemática que me define. Fui percebendo, gradativamente, que todas as coisas mágicas que me aconteceram só ocorreram porque me desloquei do polo ativo. E assumi que não sou o protagonista de mim. Se o processo da existência exige que eu litigue com o mundo para que nele possa me definir, reclamando a chancela jurisdicional da religião ou da ciência, da política ou da filosofia, da indústria cultural ou da arte – então eu prefiro me retirar.
Eu me retiro porque para me ser preciso deixar de o ser. Porque o que eu sou não é tudo aquilo capaz de me definir: o que eu sou não possui nome, forma, cor, medida, peso, altura, graduação, carteira de trabalho. O que eu sou não pode ser mensurado. O que eu sou é incomensurável, porque se localiza entre o ser e o não-ser. Para ser não basta ser – é preciso procurar em outro lugar. Porque se a liberdade é um direito universal, todas as palavras que compõem esta frase são incapazes de delimitar a incomensurabilidade do ser. O ser só é quando continua sendo sem nomes – só há liberdade onde não sentimos necessidade de falar dela.
Enquanto tudo aquilo que fizer e escolher puder ser fundamentado num relato qualquer, científico ou religioso, teórico, filosófico, político, ético, é porque estarei optando por ser de maneira residual. Se quiser o retorno ao que me é próprio e peculiar, se quiser reaver minha natureza humana vaga e imprecisa, preciso me apoiar no infundamentável. Naquilo que for próximo de uma poesia realizada em missa. Naquilo que estiver perto de uma arte capaz de atualizar o real com a mística que lhe é inerente e que se perdeu. Porque eu nasci numa época descrente, desacreditada e choramingosa dos erros do passado mais próximo – mas não detenho os instrumentos para me conduzir tal qual se conduzem estes seres. Não perdi a crença, porque nunca a tive; não estou desacreditado, porque nunca dependi dos referendos e dos créditos que o mundo poderia me garantir; tampouco posso restar choramingoso, se não tenho as dores das promessas inacabadas e as lágrimas do sofrimento ulterior.
Vou continuar permanecendo assim, neste espaço, o local da descontinuidade. Só posso ser sendo algo muito maior do que o que sou. Só sou sendo para o outro. Só sou sendo pelo outro. Só me pertenço quando minha atitude diz respeito a sensibilidades que me são exteriores. Só amo quando retiro o protagonismo do ser para atender ao protagonismo da vida. Localizado aqui, entre contingências e coincidências, entre afagos e desertores, entre profetas e feiticeiros, talvez eu me reconheça em outros caminhos, naquilo que é feminino, naquilo que é místico, naquilo que é nosso, na insanidade, no presságio, na queda, no erro, na hipótese, no que não poderia ser e foi, no que era e deixou de ser para se transformar em um algo maior. A fé não comporta paradigmas ou estatísticas.