sexta-feira, 22 de julho de 2011

Entre contingências e coincidências




Produto de sociedades despedaçadas, o intelectual é sua testemunha porque interiorizou seu despedaçamento. É, portanto, um produto histórico. Nesse sentido, nenhuma sociedade pode se queixar de seus intelectuais sem acusar a si mesma, pois ela só tem os que faz. (Jean-Paul Sartre)

O engano milenar do teatro é que fez do palco um espaço exclusivo de atores e de atrizes. Por que nós, os não-atores, as não-atrizes, não teremos também o direito de representar? Objetará alguém que não dominamos o meio de expressão teatral. Protesto: dominamos, sim. Que fazemos nós, desde que nascemos, senão teatro, autêntico, válido, incoercível teatro? (Nelson Rodrigues)



Quero achar que podemos promover saltos qualitativos em nosso convívio com o mundo. Quero acreditar que posso me reconhecer e me reconsiderar perscrutando o meu passado. Há quem acredite que nosso passado não está em nossas costas, mas em nossa frente, diante de nossos olhos. Há quem acredite que o futuro não se projeta diante dos nossos olhos – mas permanece ocultamente ocluso em nossas costas.

Se hoje sou assim, sou mero fruto do acaso. Quando apareço hoje ao mundo, não expresso mais que a soma de todas as minhas contingências do passado. A vida humana se inicia com um acaso estatístico possibilitado pela impossibilidade da vida: o que vemos diante do espelho é uma dentre as milhões de possibilidades genéticas que herdamos de nossos pais – é assim que todas as outras se tornam impossíveis. Além disso, uma das milhões de possibilidades culturais que herdamos de nossa sociedade - que é uma em milhões.

Cada momento que me procuro nas linearidades da vida, automaticamente me perco. Cada momento em que tento fundamentar minhas escolhas em impulsos libidinais, vontade de poder ou luta de classes, percebo com mais intensidade que meus atos continuam sendo unicamente revestidos de pura fé. E assim me descubro um metafísico às avessas. E descubro que não sou mais ou menos humano que todos os outros mundanos que vagam errôneos e errantes. Explico: nenhuma das escolhas que fiz tomando como mote a racionalidade trouxeram-me os fins e objetivos prometidos. E assim triunfa o capitalismo – o império da razão é uma farsa.

Se decido traçar em palavras fugazes e frágeis a minha identidade, é porque quero fincar neste mundo algo que não sou. Porque tudo aquilo que somos automaticamente nos escapa. Explico: todos os discursos capazes de nos caracterizarem como um ser no mundo, cuja posição social e política está bem delineada, servem para nos anularem. A emancipação e a libertação não residem onde costumamos procurá-las. Entre existir a vida e existirmos nela, na brecha cósmica entre o ser e o nada, na lacuna identitária que se amplia entre um projeto existencial e outro – talvez estejamos ali mesmo, no não dito, naquilo que não pode ser falado, naquilo que não estará escrito ou registrado, no que se perde, naquilo que efetivamente é de maneira desinteressada.

Eu me encontro aqui: a soma de todas as coisas que fiz e que fizeram comigo, certas ou erradas, tristes ou banais, profanas ou sagradas, morais ou antiéticas, previsíveis ou utópicas – é esta disfunção matemática que me define. Fui percebendo, gradativamente, que todas as coisas mágicas que me aconteceram só ocorreram porque me desloquei do polo ativo. E assumi que não sou o protagonista de mim. Se o processo da existência exige que eu litigue com o mundo para que nele possa me definir, reclamando a chancela jurisdicional da religião ou da ciência, da política ou da filosofia, da indústria cultural ou da arte – então eu prefiro me retirar.

Eu me retiro porque para me ser preciso deixar de o ser. Porque o que eu sou não é tudo aquilo capaz de me definir: o que eu sou não possui nome, forma, cor, medida, peso, altura, graduação, carteira de trabalho. O que eu sou não pode ser mensurado. O que eu sou é incomensurável, porque se localiza entre o ser e o não-ser. Para ser não basta ser – é preciso procurar em outro lugar. Porque se a liberdade é um direito universal, todas as palavras que compõem esta frase são incapazes de delimitar a incomensurabilidade do ser. O ser só é quando continua sendo sem nomes – só há liberdade onde não sentimos necessidade de falar dela.

Enquanto tudo aquilo que fizer e escolher puder ser fundamentado num relato qualquer, científico ou religioso, teórico, filosófico, político, ético, é porque estarei optando por ser de maneira residual. Se quiser o retorno ao que me é próprio e peculiar, se quiser reaver minha natureza humana vaga e imprecisa, preciso me apoiar no infundamentável. Naquilo que for próximo de uma poesia realizada em missa. Naquilo que estiver perto de uma arte capaz de atualizar o real com a mística que lhe é inerente e que se perdeu. Porque eu nasci numa época descrente, desacreditada e choramingosa dos erros do passado mais próximo – mas não detenho os instrumentos para me conduzir tal qual se conduzem estes seres. Não perdi a crença, porque nunca a tive; não estou desacreditado, porque nunca dependi dos referendos e dos créditos que o mundo poderia me garantir; tampouco posso restar choramingoso, se não tenho as dores das promessas inacabadas e as lágrimas do sofrimento ulterior.

Vou continuar permanecendo assim, neste espaço, o local da descontinuidade. Só posso ser sendo algo muito maior do que o que sou. Só sou sendo para o outro. Só sou sendo pelo outro. Só me pertenço quando minha atitude diz respeito a sensibilidades que me são exteriores. Só amo quando retiro o protagonismo do ser para atender ao protagonismo da vida. Localizado aqui, entre contingências e coincidências, entre afagos e desertores, entre profetas e feiticeiros, talvez eu me reconheça em outros caminhos, naquilo que é feminino, naquilo que é místico, naquilo que é nosso, na insanidade, no presságio, na queda, no erro, na hipótese, no que não poderia ser e foi, no que era e deixou de ser para se transformar em um algo maior. A fé não comporta paradigmas ou estatísticas.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Sobre medidas cautelares e prisões temporárias




Um amigo me perguntou o que eu achava da nova lei das medidas cautelares e prisões temporárias. Respondi assim:

Primeiro, todas as leis, aprovadas ou engavetadas, expressam uma disputa de valores em torno de uma questão social. A aprovação ou o engavetamento (só para nos limitarmos a estas duas metáforas) são ambos representações. Representações são símbolos. Estes símbolos são a expressão de como o jogo político está se desenrolando: quem está ganhando, quem está perdendo, quem está bem na fita, quem está devendo, quem está com crédito, quais nichos ou grupos de interesse estão colocando na agenda política do país a sua pauta local.

Feita esta ressalva, confesso, não parei para analisar quais são as negociações políticas que antecederam e perfizeram a natureza da aprovação da nova lei de medidas cautelares.

Aqui, vou entrar na técnica para te explicar. Existem dois tipos de prisão: aquela que é cautela e aquela que é sanção. Cautela é quando você tá causando problemas para o processo e precisa ser preso pra esclarecer alguma coisa e/ou até que se esclareça alguma coisa. Ex: há indícios de que você roubou uma loja, mas ainda não foi provado nada, é só um indício. Você está sendo processado. No meio do processo, você decide fugir quando vai prestar depoimento: veja, o juiz vai mandar te prender porque você está atrapalhando a colheita de provas: era pra prestar depoimento e fugiu, tá atrapalhando o processo. Vamos piorar: no meio do processo você faz um roubo com 100000 testemunhas, sai até no jornal. Porra, então você tá conturbando tudo, tem o indício de que cometeu um crime (do qual ainda não foi julgado/sentenciado - não tem pena ainda) e tem prova cabal de que cometeu outro (embora, da mesma forma, não tenha sentença, não tenha pena). Então vai preso.

Deu pra entender o espírito? O lance da medida cautelar é que a prisão é necessariamente temporária: até sanar o problema (o cara fazer o depoimento, o cara parar de cometer trocentos crimes e só voltar a ser preso se for condenado). Sanou, TEM que soltar.

Sanção é quando você é condenado. Vamos supor: você tá sendo processado porque matou alguém. No seu depoimento, você diz: confesso que matei porque tinha ódio. Porra, já era, vai ser condenado. Mas isto é pena. A pena tem várias finalidades: reprimir sua conduta, de modo a instigar segurança no coletivo; te castigar por ter feito merda; te excluir da sociedade porque você é preto, favelado, sem terra, imigrante ou coisas do tipo; (agora é eufemismo) te reeducar para aprender a conviver em sociedade e, depois, te ressocializar.

Deu pra entender até aqui? Agora lá vai a bomba: no brasil, temos cerca de 600.000 pessoas presas, pra arredondar pra cima. Nem vou perder tempo te dizendo quantos desses são pretos ou mestiços e quantos são brancos. Bem, nos EUA são dois milhões de presos. Lá estão presos 25% de todos os presos do mundo.

Ok. No Brasil, 1/3 do total, ou seja, cerca de 200.000 presos não tem condenação. São presos temporários. Isto, na técnica. Na realidade, estavam presos às vezes há 5 anos, 8 anos. O cara fica 'temporariamente' preso um tempo 3x maior que a própria condenação dele (vamos supor, condenado a 3 anos). E a condenação chega depois que ele já tá 8 anos preso. E depois? Alvará de soltura? É claro, mas mesmo o alvará, por negligência ou omissão, demora mais 2 anos pra sair às vezes. O que é mais absurdo, afinal?

Não to excluindo o fato de que muitos caras perigosos serão soltos. Mas quero acrescentar um dado: inúmeros caras que não são perigosos continuam presos.

Percebe como este panorama abala em cheio o nosso direito penal e nosso processo penal? É o que costumamos chamar de insegurança jurídica.

Agora, é claro que a grande mídia vai gritar: ESTÃO SOLTANDO BANDIDOS. ESTE BRASIL É UMA VERGONHA.

sábado, 4 de junho de 2011

A juventude do ser



A juventude do ser


A minha singularidade pessoal talvez me permita conhecer uma universalidade que nos é igual. A minha mundanidade, se usada com sinceridade, pode me dirigir àquilo que ainda não toquei. O que ainda não toquei é, concomitantemente[1], o meu ser humano, o ser humano do outro e a relação humana havida entre estes seres específicos. Não há um tronco apto a unificar as subjetividades dos seres humanos, senão aquela regra que anula toda e qualquer parametrização: não existem referências postas, não haverá referências impostas[2]. E ainda que se tente qualquer movimento neste sentido, a história nos mostrará, como efetivamente já demonstrou, que tais movimentos estão fadados ao fracasso.

O meu ser humano, o eu que se torna humano à medida que vai sendo, o elemento que se formula enquanto em eterno processamento – eis o caminho que optei para decifrar o enigma de tudo aquilo que me extrapola. Ser humano é compreender a humanidade em sua mundanidade peculiar, própria de cada cultura, propósito de cada existência. É o movimento pela potencialização das subjetividades. Eis o critério universal que talvez nos sirva de parâmetro: a total inexistência de referências que se sustentem infinitamente.

As filosofias ocidentais não responderam minhas angústias. Ao contrário, aumentaram-nas. Minhas parcas leituras me arrancaram do tédio para me prenderem na depressão. A política do meu tempo, do meu país, do meu gérmen cultural, não me contempla nem contempla aqueles que são do meu povo. O trabalho não nos dignificou. O Direito, a Social-Democracia, a Ciência, o Estado, a Justiça, a Moral, principalmente o tal do Capitalismo, vieram cheios de pompa, cheios de promessas e de projetos inconciliáveis entre si.

Suas propostas calaram os insurgentes, enclausuraram os desobedientes, assassinaram nossos heróis e nossos mártires. Suas verdades, desnudas ou travestidas de perucas, serviram de instrumentos falaciosos. A positividade da ciência anulou a criatividade da arte. Criaram técnicas, fórmulas, epistemologias, castraram nossos gatos e cachorros, prenderam os maconheiros, sufocaram os homossexuais, afogaram a feminilidade da natureza e da mulher, disseram que era pecaminoso o trato da célula-tronco, mas que era um ato de fé econômica a transmutação genética de nossas sementes.

Mas fizeram mais. Deram fim ao apartheid justamente porque já haviam introjetado o preconceito em nossas entranhas. Anularam os dispositivos de controle escancarado para controlarem nossas mentes. Se somos diferentes na cor, somos idênticos na dor. Nem por isso somos respeitados, porque somos pobres, somos burros, somos sem cultura, não ingerimos nem digerimos a cultura engendrada pela burguesia revolucionária do outro século. Enganaram-nos: unificaram nossos banheiros de brancos e negros, mas nossos Parlamentos continuam monocromáticos: brancos e fálicos. Igualaram-nos na merda, mas não na benesse. Vivemos um kitsch que estratifica a estética da hipocrisia, do sabido-mas-irrevelado, do conhecido-mas-estabelecido-nos-bastidores e undergrounds daquilo que, inescrupulosamente, chamamos ethos.

Estes senhores desrespeitam, cotidianamente, as lutas culturais daqueles que se decidiram pela desobediência. Tornam o emergente um mero pingente ornamental do hegemônico. O que antes era cooptação, agora deram o nome de negociação. O que antes chamavam desaforo, hoje chamam de acordo. De acordo, Presidente. De acordo, senhor Ministro. De acordo, Excelência. De acordo, chefe. De acordo, seu Delegado. De acordo, professor. De acordo, pai. De acordo, mãe. E de tanto ficarmos assim, de acordo, eles fazem os acordos fundamentais entre eles e nos excluem. Ficamos tanto de acordo que perdemos a oportunidade de estabelecer as nossas demandas para a criação do verdadeiro acordo.

Não nos escutam. Não querem saber de nós. Se dissemos que temos direitos, lá vem eles e criam o Estatuto. Estatuto disso, Estatuto daquilo, e haja tutela jurisdicional pra cuidar de tanta fragilidade! Não! Não queremos as suas fórmulas, não queremos essa normatização desenfreada, não necessitamos este tipo de tutela burocrática. Chega de papeis, se o jurídico é desenrolado na terra. Chega de formalismos, se o político é perpassado pelo afeto. Chega de métodos e procedimentos, se o processo acerta-se durante o erro. Chega de acordos, se só somos capazes de nos entendermos mediante desacertos.

Ensinaram-me a linguagem do óbvio, como se ela fosse capaz de anular ou abarcar o absurdo. Ensinaram-me a pensar, quando o amor exige que esqueçamos da panacéia da razão. Ensinaram-me uma série de rituais sórdidos: cumpri com todos eles. Cumprimos, diariamente, com todo este arcabouço de boas maneiras e politicamente correto que cheira mal, cheira menos ética e mais oportunismo, menos ideologia e mais fisiologismo. Sinto na boca o gosto amargo de um teatro de marionetes.

Todos nós cumprimos com os mitos. Os mitos sociais, os mitos religiosos, os mitos políticos, os mitos morais e psicanalíticos, os mitos econômicos – mas os deuses por trás dos mitos não nos foram apresentados. Cumprimos com o mito sem acessar a divindade prometida. Ensinaram-nos a chamar milagre as peripécias dos ilusionistas do mercado capitalista e monopolista. Os ensinamentos de meu tempo são mordaças. Mais inteligente é aquele que não se expõe, que não se arrisca, que não se revela.

Se minha indagação existencial estivesse presa entre a concretude vivenciada e a metafísica idealizada, talvez fosse mais simples. A condição humana que se propala é pela busca de um eixo cosmológico que nos coloque a todos dentro de uma cápsula. Razão, Deus, Ecossistema, Metafísica, Direitos Humanos, tantas e tantas tentativas de enclausura. Insistem em tornar-nos idênticos para não percebermos que somos iguais no inesperado, no impensado, iguais no desigual, iguais no incompreensível, no dubitável, iguais em angústias incomparáveis.

Entretanto, estamos em marcha. A marcha é pela ocupação do espaço do possível. Pela capacidade de compreensão do que se diz cognoscível. Se o que é possível é amplo, se o possível é em si infinito, se a mensagem de fé e esperança que fica é de possibilidade, então eu me arrisco. Arrisco a me portar de modo arisco. Da mesma forma comportam-se todos aqueles que se indignaram com as consequências grotescas deste modo de operação que só visa ao próprio umbigo. Nossos passos, em marcha, podem retumbar e ribombar os sonoros audíveis que o povo pode, unido, concretizar. A sinfonia da articulação dos povos canta sua serenata. Estamos a escutar o seu prelúdio. Há dez anos, fermentando-se em gestação, parecia apenas uma linda ilusão, não é?

Pois, há dez anos, eu acreditava em heróis. Mas eram todos ridículos, porque eram todos estadunidenses. Eram heróis de mentira, super musculosos, usavam roupas coloridas, lutavam com poderes especiais que nenhum humano de verdade possui. Há dez anos, eu acreditava que o mundo era do tamanho do Universo infinito. Hoje, descobri que a imensidão do mundo cabe na casca de uma noz.[3] E então, durante este processo, pude perceber que os verdadeiros heróis vestem-se como gente da gente. Não possuem poderes especiais: ao contrário, fazem coisas especiais com os poderes que qualquer humano tem.

Os verdadeiros heróis estavam carregando suas enxadas, ou suas pastas de couro, ou estavam se maquiando diante de um espelho, amamentando, sorrindo aos mais carentes de sorriso e compartilhando da dor da fome com os irmãos de espírito. Estes heróis existiram e ainda existem. Mas, ainda assim, cético e ingênuo, incrédulo e infantil, eu teimava em achar que os heróis pertenciam apenas ao passado. Eram Gandhi, Guevara ou Marighella, e pela culpa histórica de meus pais, que me conceberam neste momento, teria o desprazer de desconhecê-los.

No entanto, de uma forma mágica e avassaladora, de um jeito prazerosamente subversor, descobri que eu vivia num tempo de heróis. Heróis que incendiavam as massas com seus sonhos e sua arte. Heróis que eram capazes de inspirar porque sabiam como desocultar os segredos que todos os humanos carregam e desconhecem. Heróis, não porque tivessem poderes sobrehumanos. Mas heróis porque conseguiam fazer da mundanidade algo divino.

Muhammad Bouaziz, meu caro tunísio, eu não tive o prazer de conhecê-lo. Talvez, se tivéssemos nascido em um berço próximo, se nossas mães fossem amigas íntimas; ou então, se por algum encontro da vida, aprendêssemos as diferentes línguas que ontem nos distanciaram – e que hoje distanciam meus irmãos dos seus irmãos – e pudéssemos conversar longamente; talvez, Bouaziz, talvez eu tivesse a honra de conhecê-lo em sua peculiaridade singular, em sua pequenez e grandeza completamente unidas, e portanto humanas. Obrigado por se tornar o meu herói, Bouaziz, mesmo me desconhecendo: você estaria sorrindo até agora se pudesse compartilhar de seu próprio feito conosco.

Bouaziz, atear fogo no próprio corpo é ato capaz de inflamar dez gerações de inconformados. Bouaziz, queremos dizer-lhe, onde quer que esteja: sua carne derreteu em contato com o fogo na mesma medida em que as estruturas institucionais apodrecidas de seu país ruíram. Bouaziz, me permita a honra de ser o meu herói, muito além de ser o herói de seu povo, porque se as línguas que nos separam podem nos distanciar, a linguagem com que nos comunicamos é de todo nossa. É a linguagem do desespero e da consequente revolta. Mas não esqueçamos: o povo realizando sua lindeza e, longe dali, os Urubus do eixo EUA-EUR espreitando as carniças dinossáuricas que meu tempo escolheu chamar de “ouro negro” – falo do petróleo.

Evo Morales, muito distante da Tunísia, e mais perto do meu coração, tornou-se também o meu herói. Mostrou-me que os grandes teóricos da Democracia, arautos do Welfare State estão professando verdades que se tornaram, como eles mesmos gostam de dizer, démodé. Falácias retóricas que não convencem as multidões oprimidas do que era considerado o Sul, e hoje é colocado no Norte. Evo, um indígena, um artista, um verdadeiro Estadista, veio à cena, sem personagens, trabalhar um novo papel: vestir cocar e ocupar os espaços do possível. Era um atentado contra o velho teatro, pois era uma atuação mais viva, era original porque retomava o que era ancestral. Uma atuação toda ela colorida, mística e saborosa, capaz de desestruturar o velho teatro em branco-e-preto.

Quem diria, há dez anos, que os Estadistas que nos ensinam a verdadeira Democracia, revitalizada, potencializada, não vieram da Europa, não são gregos, franceses ou alemães, não são nem mesmo da grande potência rica dos Estados Unidos da América, tampouco da grande ilha tecnológica que chamam Japão. Quem diria, um indígena, uma história sofrida, amputada, aniquilada, abortada, amordaçada, estuprada, esquecida, arrefecida, desarticulada, tutelada, disputada, vendida, humilhada, usurpada, desmistificada no pior valor que essa palavra pode carregar – quem diria, um indígena, veio à cena, com seu cocar colorido, dar-nos a maior lição de política, que faria A República de Platão virar um penico.

Qual é a grande lição legada pelo representante da história esquecida, falada e não-escrita, vivida como ensaio artístico-antropológico? Em minha mundanidade, interpreto a lição da seguinte maneira: a ideia de eu só adquire sentido se inserida na ideia do todos-nós. E todos, como nós, que se entralaçam, e que por vezes se bloqueiam, mas vão se organizando e estruturando gradualmente, humanos que somos, em união integradora com o ser natural, em contato uno e indivisível com a Mãe Terra. Que nós, dessa terra linda chamada América Latina, preferimos chamar de Pachamama[4].

Ser eu é sermos nós-naturais. Somos entrelaçamentos cósmicos numa unidade divina que nos integra em nossa peculiaridade enquanto espécimes humanas, únicas e singulares, diversificadas como insetos, integradas em um todo vivo e pulsante, uma teia radiofônica de criação artística, a rede de uma estrutura que, só de pensar, me faz regozijar ao repetir: Pachamama, Pachamama, Pachamama. Privilégio nosso, que queremos dividir com vocês. É o novo pacto, sem ressentimentos com o passado. Queremos compartilhar do nosso melhor com vocês, que são o que tem de pior. O que acham do trato?

Esta é a época em que vivo. Quereria pintá-la num retrato. É a época em que o ser humano afirma-se em sua plenitude. É a juventude do ser humano. Então, peço licença se preciso for, mas não me venham com estas conformações arbitrárias e universalizantes, unificantes em reificação autofágica, elocubrações da masturbação do ego, individualismos comesinhos, incompreensões e abismos. Não me venham com abismos, com a burocracia, com os papeis, com os dez cargos hierárquicos desta estrutura formal estúpida. Não me venham com subterfúgios, avaliações morais, comparações ridículas. Tratamos aqui de um tesouro, chama-se humano, gestou por milênios no berço da terra e só nasceu há poucos séculos. O ser humano é jovem, está adquirindo energia e enriquecendo-se na respiração fundamental de tudo aquilo que não o é. Tenha cuidado.

Fora deste apocalipse mercadológico, eis aí, afirmando-se, insurgindo-se, pairando em horizontes límpidos, no arrebol que escancara e desoculta, emergentes, desobedientes, irreverentes, evidentemente latentes, latinos, calientes, não falados, calados em mordaças, olha aí, que coisa linda, eis a alteridade da natureza humana. Descobrimos o tesouro bem antes de vocês. Ele não é amarelo e não brilha. Não é especificamente viscoso e preto. Não falo deste ouro.

Falo do ouro verdadeiro, o ouro que incendeia nossos sentidos, a aproximação do branco e do negro, o calor do afeto, a gestação da mistura, a geração da miscigenação, a concepção do mulato, a afirmação identitária do que é o outro, em sua lindeza, sua peculiaridade antes-muda, agora-falada, é o sabor do gozo. A compatibilização dos povos, os pretensos acordos, não, não foram eles, foi esta gana louca e pavorosa, erótica e estética, pelo que compactuamos chamar de diferença. Foi isto o que nos atraiu e o que nos misturou. Iremos lá no outro, irremediavelmente, buscar nossa própria identidade. O ser do humano. Eis a proposição da ontologia latino-americana, tão saborosa porque soube misturar os ingredientes da diversidade.

O sentido aponta para essa capacidade de abertura ao outro. Buscamos a nossa essência na contingência dos relacionares. As relações humanas, as relações dos humanos com a natureza, a relação dos humanos com seus agrupamentos ideológicos, afetivos, as relações de interdependência entre linguagens previamente compactuadas – parece claro que só podemos ser nós, parece claro que só posso ser eu sendo todos vocês. Não há autores por trás dos escritos, como não há deuses por trás dos mitos. Estas metafísicas[5] que viraram costumes são mentirosas. Somos apenas compartilhamentos. Esta nossa constatação obtusa prima pela conscientização sedutora do outro. É nossa resolução erótica da vossa estética morta.

Este é o produto das moções psíquicas sofridas aqui, coletivamente, passando frio e ficando quente com essa gente, esse povo valente, acúmulos gerados por convenções que são nossas. De todos nós. É só olhar adiante. Isto, aí. Estão aí, foram organizadas por algum clown de Shakespeare. Aquele clown inexperiente, residente na morada espraiada de todos nós. Nós entrelaçados.











REFERÊNCIAS

DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. Trad. Fernando Peixoto. São Paulo: Perspectiva, 1977. (Coleção Debates).
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 22. ed. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006.
______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 32. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1997.
HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz. Trad. Ivo Korytowski. São Paulo: Mandarim, 2001.
HEIDEGGER, Martin. El Ser y el Tiempo. 7. ed. Trad. de J. Gaos. México/Madrid/Buenos Aires: F. Cultura Economica, 1989.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003.
KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. 56. ed. Trad. Tereza B. Carvalho da Fonseca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
NIETZSCHE, Friedrich. Para a genealogia da moral: Uma polêmica. trad. notas posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
PLATÃO. A República. Bauru: Edipro, 1994.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: Os Pensadores. Vol. XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1996.
______. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997.
SOUZA, Hamilton Octavio de. O bloqueio conservador no Congresso Nacional. In: Caros Amigos Especial, ano XIV, n. 49. São Paulo: Casa Amarela, 2010.
STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Trad. Pontes de Paula Lima. 22. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.


[1]“ Concomitantemente” deve ser entendido, aqui, como aquilo que se processa de maneira conjunta, em interferência recíproca. O processamento em concomitância anula as ideias de autonomia e independência como referenciais cognitivos dos seres. A ontologia que se visa formular, aqui, não é autossuficiente, mas justamente interdependente.

[2] Se olharmos da frente para trás, veremos que, atualmente, estamos experimentando uma das fases mais conturbadas do Capitalismo, sinalizando sua debilidade enquanto sistema totalizante e, além disso, sua falibilidade em vetor homogeneizante de culturas. No passado mais recente, as ditaduras ostensivas, as políticas totalitaristas e autoritárias vêm, gradativamente, sendo sobrepujadas pelas reformulações do que os povos entendem por Democracia. Se olharmos mais atrás, veremos a queda dos monarcas absolutistas. Mais adiante, em retorno, veremos a queda dos senhores feudais. Atrás disso, a queda dos grandes impérios, sobretudo o Império Romano. Todas as tentativas universalizantes, unificantes, potencialmente homogeneizantes fracassaram. Não é preciso que se faça ciência para comprovar tal evidência.

[3] HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz. Trad. Ivo Korytowski. São Paulo: Mandarim, 2001.

[4] Do quíchua Pacha, "universo", "mundo", "tempo", "lugar", e Mama, "mãe", significando um conceito integrador de tempo, espaço, e interação entre seres vivos, num entrelaçamento cósmico, místico e, por que não, poético, quando dizemos "Mãe Terra”.

[5] KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Carta aberta aos estudantes e acadêmicos do Brasil



Carta aberta aos estudantes e acadêmicos do Brasil


Todos nós já sonhamos um dia em chegar ao lugar onde agora nos encontramos. Mas o cheiro que vem dos pilares que sustentam os prédios de nossa Universidade não é universal. Alguns atores insensatos arrancaram da Universidade o que necessariamente nos é universal: o amor, a luta, a transformação, a contradição. Arrancaram de nossa comunidade aquilo que deveria caracterizar-lhe: o popular, o regional, o que é tipicamente francano, mineiro ou paulista, ou uma mescla engraçada e escancarada disso tudo. Arrancaram-nos a realidade do povo paulista e do povo brasileiro, trancafiando-nos com livros e teorias imbecis, que sozinhos, não dizem nada.

Sem o real, o que somos? Sem aquilo que podemos tocar; sem o calor do sol que nos queima a pele; sem o horrível odor da vinhaça atirada ao canavial para lembrarmos o drama dos cortadores de cana; sem relações verdadeiramente afetivas, criativas e inteligentes, que nos instigam a curiosidade pelo novo e mexem com a nossa estrutura; sem os beijos perpassados pelo sedutor sabor das poesias; sem as cores, dos insetos, das flores e das pinturas, todas obras de arte de atores cotidianos; sem a política, a discussão, a contestação, a luta, a dialética, as trocas, as negociações, e todas estas abstrações paupáveis – sem o aquilo que nos torna humanos, o que nos resta?

Certos atores insensatos permitiram a nossa entrada triunfal pelo palácio acadêmico da hipocrisia, sob uma condição: que nos travestíssemos de seres inanimados. Deveríamos nos aceitar burgueses, por tradição familiar; mas mais que isso, deveríamos manter-nos burgueses, muito embora esta palavra inspire, certas vezes, uma comodidade revoltante até para o próprio burguês. Poderíamos permanecer aqui, desde que não nos pintássemos de negro, de vermelho, de amarelo, de verde, de azul. Desde que estivéssemos bem vestidos, desde que tivéssemos conta poupança, Registro Geral e Título de Eleitor. Tendo passado e não agindo no presente, prometeram-nos que aqui encontraríamos o futuro.

Entretanto, o podre futuro que o sistema vigente insiste em nos meter guela-abaixo como o melhor de todos, esse futuro pintado com muito dinheiro, sucesso, técnica e viagens, todo esse futuro corrompido pelo fútil, pelo débil, pelo egoísta, esse futuro fétido que veste os mais pobres com a mortalha de mais miséria – esse futuro não é uma imposição, mas uma escolha. E não nos esqueçamos: quem faz uma escolha deve assumir as suas consequências.

Mas nós, nós que sentimos, nós que sentimos falta, nós que queremos mais, que estamos aprisionados pelas barreiras da burocracia e das convenções sociais, nós que fomos vítimas da moral, dos bons costumes, da polícia, da ditadura – nós somos loucos, porque o sistema nos fez sentir. E sendo loucos, não aceitamos a loucura aniquiladora do sistema.

Já é o tempo de resgatarmos a parcela de amor que o sistema nos arrancou. É chegada a hora do espasmo, da revolta. É chegada a chance de admitirmos a ausência de personalidade que adquirimos nestes anos todos. Estamos fedengosos, inertes, imobilizados, reprodutores, mecanicistas, frígidos e sem um pingo de criatividade. Somos atores ou ventríloquos? Somos a elite intelectual do país ou, em realidade, um bando de marionetes da verdadeira intelectualidade corruptora?

É a hora de esbarrarmos nas limitações cotidianas de nossas relações. É a hora do xingamento criativo, da crítica artística, da manobra política, da ação consciente, do livro queimado, do contato com a dor e o sofrimento. É a hora de subir no palanque, de subir na carteira, de afrontar as verdades inverossímeis de professores retrógrados. É a hora de conhecer o chão que se pisa, o povo que se convive, a luta que é lutada. É a hora para a gíria, para a favela, para o popular, para o resgate do que se perdeu e foi usurpado da história política e cultural do Brasil.

A história, com todas as suas vicissitudes, passa, e nós, acúmulo de forças contraprodutivas, vomitamos, embebedados, as nossas futilidades, as nossas vergonhas, as satisfações mercadologicamente carnais que chamamos de amores. A história corre... Mas há uma meia dúzia de sujeitos, que todos achavam serem loucos, falarem bobeiras, perpetrarem escatologias. Uma meia dúzia de sujeitos que insistia naquilo que era palpável, na crítica pontual, no trabalho de base, na solidariedade, na força de um partido político, na luta, na responsabilidade histórica. Essas pessoas, puts, esses caras falavam que eram um “ator social”, que possuíam uma tal de responsabilidade histórica, que deveriam lutar pela abertura dos arquivos da ditadura, pouco importando tivessem vivido, ou não, a dor da tortura. Diziam-se ser, na verdade, a própria idéia que seguiam e que lhes transpirava do corpo e da alma.

Tinha algo neles que parecia uma unidade, algo emergente e urgente, que lhes transbordava a pele, que lhes integrava o suor e o sangue. Não sei porque, gradativamente, fui sendo cativado por estes sujeitos. Tornei-me louco como eles. Passei a gritar, a arrancar a roupa, a negar com ou sem fundamento, a conhecer o diferente, a tocar o real, sentir o cheiro da vinhaça e descobrir que os bóias-frias me inspiravam uma dor e um sentimento que eu achava que não me pertenciam. E um dia, estranho e lindo, escolhi sentir essa dor. Foram os sujeitos: eles me levaram a experiências que inevitavelmente me transformaram.

É porque a filosofia não se realiza, é o real que filosofa. A realidade me cativou. Cativará a todos nós. Aproximemo-nos dos loucos. Estão escondidos em suas tavernas discutindo os rumos do país. Ninguém os ouve e, no entanto, o futuro é a sua chegada, a sua morada. Mudarão o país, mudarão a história, mudarão a Universidade, todos eles – porque decidiram mudar a si próprios. Aproveitemos essa estada nauseabunda durante o curso de graduação: caso encontremos algum louco, e ele nos enlouqueça, terá valido a pena.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Idiossincrasias de acaso, não por acaso




IDIOSSINCRASIAS DE ACASO, NÃO POR ACASO

Não por acaso, as idiossincrasias perfazem a natureza humana. A forma como reagimos aos mais diversos estímulos explica, em grande parte, a essência que pode estar conosco em dado momento. Mas cuidado: a essência é também uma idiossincrasia. A essência dos humanos, assim como os próprios humanos, transita. Mudamos de essência assim como mudamos de roupas. Isso não é bom ou ruim, estamos apenas assumindo o papel social mundano que uma sociedade doente está a nos exigir. Mudam a demanda, e logo tratamos de mudar a máscara.

Acho ridículo o fato de algumas questões políticas relevantes assumirem, sem muito esforço coletivo, contornos burlescos. É da natureza histórico-política brasileira o burlesco. Discutir um problema de forma burlesca. Agir de maneira burlesca. Negociar burlescamente. Nossa vivência política é a vivência de um teatro, na qual os atores assumem papéis de momento (indicando aí a plenitude da fisiologia). Nossos políticos, não Aqueles, mas todo e qualquer cidadão brasileiro assumiram que veem vantagem na hipocrisia sustentada. O teatro da política brasileira, já há algum tempo, vem assumindo a forma de um circo. Pinte-se de palhaço e adquira sua fantasia: o teatro, que se tornou circo, passa a ser a encenação de uma farsa corruptora.

Vestiu sua fantasia? Então podemos debater o ridículo da questão.

A comunidade unespiana, a comunidade francana e a sociedade brasileira como um todo possuem os seus problemas contumazes e próprios. Debater estes problemas é de crucial importância. Mas é importante também que escolhamos a forma como decidimos debater um problema. Podemos debater um problema numa assembléia ou num palco de teatro, diante de uma platéia. Podemos debater um problema sozinhos diante de um espelho, ou unidos em um coletivo unificado. A importância crucial da forma como escolhemos debater um problema de crucial importância reside tão somente na efetividade que pretendemos. É claro que toda discussão possui a sua finalidade. E esta finalidade pode, ou não, ser atingida. É uma questão de efetividade.

No teatro grego, a peça representava, como espelho imediato, as vicissitudes da cidade grega. O teatro era, e ainda é, uma forma de conscientização política por excelência. No palco, os atores descarregam a platéia de seus problemas sociais ao mesmo tempo que lhes revela qual sua verdadeira condição ou posição na sociedade. Um encenador francês chamado Bernard Dort explica que

“Num teatro de tipo aristotélico, palco e platéia são o espelho um do outro. O palco reflete a platéia; a platéia reflete o palco. O que se está representando no palco é a própria história dos que estão do outro lado da ribalta. A ação da obra, sua fábula, é a própria verdade de seus espectadores e o palco, literalmente, liberta a platéia da preocupação de sua história. Daí a catarse.”

Não sei se o povo brasileiro escolheu ter sua história representada num palco de teatro, onde uma farsa é encenada e sustentada há muito tempo. Não sei bem se o Congresso Nacional (o teatro da representação que se tornou o circo de uma farsa corruptora) foi uma escolha deliberada de nosso povo. De nós. Mas uma coisa é certa: o teatro representado no Congresso Nacional é o teatro que nos representa. Se não o escolhemos, ao mesmo tempo, não o negamos. E ele continua lá, cheio de palhaços. Uns até vestem fantasias. E outros, mais poderosos, já desistiram delas.

Tal qual no Congresso Nacional, inúmeras vezes assistimos na política a construção de palcos. Necessita-se palco e platéia para as deliberações políticas cruciais. Aqui e ali, circos são montados e são desfeitos, sem análises prévias ou relatórios ulteriores. Monta-se o palco, sustenta-se uma farsa, atinge-se uma finalidade efetivamente e o resto que se foda.

O palco da "elite intelectual brasileira", as universidades, seja (re)pública(das) ou privada, segue a mesma lógica. Às vezes precisamos assumir papel de palhaço, num palco e diante de uma platéia, para realizarmos conscientização política. Outras vezes, a consciência política está ali, embora não queiramos aceitar. Está ali, é uma consciência política podre, asquerosa, fétida, nauseabunda, inócua, imbecil e arrogante, mas não deixa de ser consciência política. Nós, daqui, não aceitamos de imediato porque achamos que consciência política é sempre algo positivo, que gera bons frutos na construção de uma sociedade mais madura e saudável. Nós daqui somos a exceção: a regra é a consciência política consciente e controladora, aproveitadora, hipócrita e fisiológica. Traidora. E para os que são daqui: aprendam a lidar com mais esta idiossincrasia.

O lugar que escolhi chamar de casa está em tempos de revolução cultural. Chama-se Unesp Franca, e é um sítio de diversidade. Neste sítio, alguns resolveram levar ao povo, à platéia, algumas questões relevantes. E isto é histórico aqui. A luta aqui é histórica. A luta, a conscientização, o debate marcam de maneira linda e delicada a consciência de jovens sonhadores que, sem alternativa, ou como alternativa, lutam.

Outros jovens, no entanto, preferem ser os palhaços de sua própria piada sem graça. E chamaram isso de democracia: montam um espaço congênere, cheio de gente das mais diversas classes sociais, econômicas e culturais (mas todos unespianos. Idênticos?). Depois que montam este espaço, dividem o espaço entre palco e platéia. Quem sobe ao palco sustenta sua farsa. Dá seus motivos e suas argumentações, opinando favoravelmente ou desfavoravelmente a um problema de crucial importância: uma festa. Chamaram isso de democracia: abriu-se a votação para que a platéia, ou o povo unespiano, escolhesse ter ou não ter sua festa. A escolha foi feita.

Chamaram isso de democracia: oprimir, mais uma vez, o grito do oprimido. E a questão política relevante, que subjaz a esta discussão? Morreu. A forma que o teatro assumiu substituiu o seu conteúdo. O mais importante não mais é a questão da homofobia na Unesp Franca, mas saber se vamos ou não vamos ficar bêbados em mais uma festinha que representará, mais uma vez, a acomodação de uma classe já acomodada pelos seus privilégios históricos.

Deixem-me dizer-lhes o que entendo por democracia. Deixem-me dar a minha vaga impressão do que tenho notado ser democracia. Vejo a democracia como um palco da pluralidade política onde os espaços são postos para que as pessoas se degladiem sem, contudo, aniquilarem-se. Lembra dos gladiadores romanos? Corrompidos, machucados, sangrando, ferindo uns aos outros, realizando seus conchavos, e ainda assim, vivos? A democracia é isso: é tão plural que permite a convivência da idéia de liberdade ao corpo ensanguentado que a sustentou.

Vivemos nessa democracia. E vivendo nela, posso afirmar algumas coisas sobre elementos que circulam pela comunidade unespiana. Há, na comunidade unespiana:

a) elementos homofóbicos e machistas. E mais ainda: há mulheres machistas que se vestem de feministas e homens homofóbicos que são também homossexuais. Talvez, pessoas que não se suportam consigo mesmas e precisam montar um boneco ou uma personagem para apresentarem a esta sociedade podre de valores. É o papel delas, dentro do nosso teatro;

b) elementos de perseguição a homossexuais, talvez não explícitos, que facilitem a minha percepção, a sua ou a alheia. Mas lembremos que o Brasil vive um período político no qual velhos e novos valores convivem num espaço pequeno. E, cá ente nós, porque você não fica sabendo explícita e diariamente, não acredita que há linchamentos, espancamentos, torturas psicológicas, torturas afetivas em qualquer espaço deste país, obscuramente, nos bastidores do que acreditamos ser real - ainda que seja na Unesp Franca?! Acreditam realmente nisso? Olhares maliciosos e conversas profanas, fofocas, não constituem perseguição pra você?

É por isso que afirmo, sem medo: é necessário realizar um debate sobre o "problema sócio-ético-cultural" acerca da opressão ao homossexualismo em nossa comunidade unespiana. MAS NÃO TOMANDO COMO MOTE UMA FESTA IMBECIL COMO É O MISS BIXO! QUE PORRA É ESSA?

Hoje está havendo uma disputa política no seio do corpo discente. O que está em disputa? Está em disputa a confirmação de um valor social, porque trata da inclusão e exclusão das pessoas. Está em disputa, ainda, uma questão moral e ética de impor uma cultura hegemonicamente por cima da outra; e, por fim, a disputa de uma questão juridica, afinal esse problema atinge, antes da dignidade humana do humano livre, a liberdade de um humano preso.

Essa questão atinge a liberdade de um ser humano considerado indigno por uma cultura corrupta e corruptora de se excluir os grupos mais fracos para sugar-lhes as qualidades que possuem, tão somente para que o grupo no comando mantenha e sustente seu poder operante. E são os vassalos deste poder operante da política liberal-burguesa que vomitam um monte de institutos jurídicos falidos para defender a salvaguarda de uma questão que necessita ser escancarada. Este juridiquês burocrático dos tribunais apenas anula, ou afasta temporariamente, a questão da condição humana, mais em jogo do que a parafernália e os brinquedos do mundo hipócrita do direito. De um direito que é a encenação de uma farsa num palco, para determinada platéia.

Independentemente de tudo isso, é preciso que sejamos cautelosos e afetivos. Não julguemos nem calculemos o tempo que as pessoas possam, eventualmente, demorar para tomarem consciência de seus dramas. Nossos piores medos são tão presentes e imediatos que preferimos negá-los do que enfrentá-los. Sabe por quê? Por medo. E isto é também uma questão jurídica, porque um ser humano com medo é um ser humano anulado, indigno e impotente.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Minha homenagem a Fernando Pessoa



Carta de perguntas ao querido Fernando Pessoa


Se hoje sou como sou
Há algum mau nisso?
Se hoje sou mal aquilo que era
Há pecado nisso?
Se diminuí, em vez de aumentar,
A culpa é também minha?

Se hoje pudesse ser o que penso ser
E, pensando e sendo, acontecesse de crer
O que diria? Que evoluí?

Que me tornarei um revolucionário?

Se ontem eu sou me perdendo
E amanhã posso fugir me encontrando
Que mal há, me diga, em fingir que me engano?

Só pra te enganar.

E se eu escolher
Não mais me ser?
E se por livre e espontânea vontade
Eu quisesse que o que tinha sido,
Aquilo que tinha passado, caído,
Não me servissem de memória
Nem pudessem definir minha identidade?

E se eu não quisesse registros?

Se amanhã queimar meus registros
E não me tornar o sendo que ontem fui
- O que você tem a ver com isso?

Devo-te satisfações?
Devo-te?
Não lhe devo nada
Porque nem eu mesmo posso saber de mim

Se ontem fui o que não pude não ser
Se me arrependi e neguei minhas falhas e omissões
Se tanto faz o que fizesse que fosse,
Ainda que eu tivesse erro e errando e errará mais um montes
Ainda assim não me cabe o perdão?

Que me diz de você?
O mesmo todos os dias diante do espelho?
Cada dia um diferente a respaldar o cotovelo?
E no banheiro?
Nos banhos e nas espumas,
São quantos e quantas de você?

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Entre filósofos e encenadores




Em nossa arte é preciso viver o papel a cada instante que o representamos e em todas as vezes. Cada vez que é recriado tem de ser vivido de novo e de novo encarnado.”

STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Trad. Pontes de Paula Lima. 22. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 47.

- Será que Stanislavski, com esta passagem, acabou por reformular os pensamentos de Nietzsche sobre o eterno-retorno e a vontade de potência que deriva dele? Nietzsche teve a ousadia de pensar que o tempo presente, o momento do instante-já, conquanto em movimento constante, retornará. E o presente momento, com todo o arcabouço de possibilidades que carrega consigo, retornará eternamente. Esta lição significa que sempre teremos em mãos a possibilidade de recriar o mundo a nossa volta. A esta capacidade humana Nietzsche deu o nome de vontade de potência.

Stanislavski, por sua vez, quis captar a mesma fugacidade potencializadora que perfaz o humano e retransmiti-la, artisticamente, no palco – diante de uma platéia. Ambos os autores traçaram caminhos de conscientização política pela própria postura autônoma e independente de afirmar-se uma idéia mediante uma ação, uma conduta, uma atitude também criadora, e portanto inovadora.

O primeiro quis nos afirmá-la por meio de uma filosofia universalizadora, que uniria em uma entidade única o cósmico e o mundano. Seria uma filosofia tão avassaladora que só poderia ser construída sob a negação em cascata da filosofia ocidental de até então. O segundo preferiu a compreensão da alma humana em contornos estéticos e emocionais, preferencialmente na expressão artística da arte cênica. O próprio teatro funciona como uma denúncia. Lírica, poética, inspiradora e original, contudo. E aqui se encaixaria o fator mais humano, a atuação do ator.

Nietzche assimilou ao seu eterno-retorno a vontade potente e criadora do humano como fator de transformação material da realidade. Interpretando-o, Deleuze afirmou que o eterno-retorno, ligado à idéia da vontade de potência, significa o eterno devir criador que recai ao humano. Stanislavski assimilou ao seu teatro-denúncia a emoção em atuar do humano, também criadora e potente, como fator básico de conscientização de seu público, sua platéia. Ambos entrelaçam-se aqui, creditando ao humano, ainda que em sua pequenez cósmica, a potencialidade inovadora de irromper no mundo, não apenas modificando-o, mas efetivamente reformulando-o, reestruturando revolucionariamente as suas bases antigas, recompondo e reorganizando os reais fatores de condução da vida humana, em suas relações sociais, políticas e afetivas.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Tudo nosso, nada nosso, queridos amigos.




Tudo nosso, nada nosso


Vivo os dias a sonhar um sonho que não é meu;
Um sonho que não foi imaginado ou inventado por mim,
Mas um sonho que também escolhi sonhar por uma questão de liberdade.

Falo do sonho da grande maioria dos seres humanos
Que por algum condicionamento cósmico,
Alguma determinação nada divina,
Tiveram a audácia e o despudor de conviverem nesta terra.

Vivo os dias a pensar um pensamento que não seja necessariamente meu.
Prefiro pensar pela perspectiva daquele que não sou eu:
Quero pensar o outro.
Porque é apenas pensando no outro
Que se abre sobre mim a possibilidade de me compreender a mim mesmo.

Meus olhos, meus desejos, minhas dores e também meus prazeres:
Quando olho para um canavial e para os bóias-frias
É ali que encontro uma parcela de angústia e dor que eu achei que não me pertenciam.

Minhas idéias, minhas filosofias juvenis, minhas emoções momentâneas:
Quando sinto o passado de meu país,
Constantemente estuprado e explorado em suas riquezas,
Manchado do sangue de todos aqueles que decidiram lutar
Por uma causa que transcendesse o egoísmo do qual somos vítimas assim que nascemos
É que me descubro débil ou forte diante da responsabilidade histórica
Por tudo aquilo que fiz, mas, principalmente, pelo que deixei de fazer.

Assim eu me descubro no ódio e no amor,
Assim eu me percebo sorrindo ou franzindo a testa.
Na pobreza e na fartura, seja a minha ou a sua.

Todos os dias caem dos meus olhos tantas lágrimas
Tantas águas que eu sei que não são minhas.
Que nunca foram dores minhas
Porque eu nunca senti a dor concreta da fome.

Mas há um espelho chamado realidade.
Neste espelho, vejo o reflexo de um garoto
Um garoto mimado ou sensível
Que chora um choro tantas vezes chorado
E que assim se alia ao sonho daqueles que conseguem sonhar,
Que sonham como a única alternativa para continuarem vivendo.

Neste momento, decido que estas lágrimas também são minhas.
E que esta luta, esta luta que achei não ser também a minha luta
É nossa. Minha e sua.

Eu choro os dias para viver uma vida que não seja só a minha vida
Para que eu adquira a parcela de audácia e despudor
Tão necessários para convivermos nesta terra.

Quando um monte de lixo amontoado e empilhado
Forma uma planície que será a moradia de tantas crianças
Crianças tristes, felizes, saudáveis ou doentes
Eu compreendo a futilidade e a estupidez das minhas embalagens descartáveis.

Assim eu me descubro imbecil ou criativo.
Assim eu me percebo atuante ou inerte.

Todos os dias eu escrevo palavras já ditas ou já caladas,
Todos os dias eu expresso idéias e opiniões que não foram por mim inventadas.

Prefiro que o mudo fale pela minha boca.
Prefiro que aquele operário que ficou cego da caldeira
Tenha a possibilidade de enxergar com os meus olhos.

Sem vocês, sem todos vocês, corruptos ou solidários,
Sem vocês, meus amigos, amados ou desgraçados,
Sem vocês eu não sou. Sem vocês eu só me pretendo.
Sem vocês não podemos ser. Sozinhos não existimos.

Sei que sou humano porque identifiquei em vocês a minha fragilidade.
Sei que sou humano porque vocês identificaram em mim a sua fragilidade.

Sejamos humanos, juntos e unidos,
Nossa inevitável fragilidade é o caminho para a universalidade.