7 teses sobre a vida
1 - O simples
fato de você estar lendo a este conjunto pretensioso de teses é o melhor indicativo
de que a sua vida, como a minha, carece de sentido absoluto. Nosso primeiro
gesto para com a vida é aceitá-la em suas discrepâncias, nem sempre
inteligíveis a partir de ferramentas racionais. Nem tudo o que passa pela vida
necessita sentido, justificativa, causa, razão, verdade fundamental/fundante.
Aliás, retifique-se: nada que passa pela vida necessita desta parcela de
situações. Ocorre necessariamente que todas as narrativas, todas as ideologias,
todos os discursos e práticas que quiserem conferir um sentido unívoco para a
vida de um ser humano, ou mesmo para as vidas de vastas populações massificadas,
merecem suspeita. Esta pluralidade não é marca exclusiva de nossa época, razão
pela qual não perco meu tempo aqui diferenciando modernidade de ultra/super/pós-modernidade,
discussão plausível em apenas algumas cadeiras de pós-graduação em ciências
humanas (e talvez alguns gabinetes que funcionem como centro de decisões
políticas locais, regionais, nacionais ou transnacionais). Fiquemos atentos:
toda tentativa de conforto na obtenção de uma resposta, toda tentativa de
satisfação libidinal em gozar o usufruto de um objeto de desejo, toda tentativa
de cristalização ritualística para uma perpetuação costumeira e social de um
hábito qualquer, toda série de expedientes e procedimentos logicamente
encadeados para a tessitura de um significado absoluto para se viver a vida,
totemizado em forma de arte ou ciência, só irá nos conduzir à sombra anunciada
pela psicanálise: a morte. Viver não se trata apenas do conjunto de forças que
agem contra a morte, resistindo a ela. Viver é exatamente aproveitar a situação
inevitável e irremediável da morte para, a partir dela, fecundar o novo. Daí
porque o significado de uma vida só pode advir após sua cessão. É nisto que
reside a atualidade quase extemporânea de Sócrates, que transcendeu os obstáculos
do tempo mais por um comportamento que por uma obra.
2 – A busca pela felicidade só pode ser uma busca tola,
pateta ou patética. Àqueles que acreditam que a vida significa a luta e o
trabalho incessantes no sentido de suspender temporalmente os breves intervalos
de prazer que encontramos pelo nosso caminho – tornando-os mais vastos, mais dilatados no tempo, quiçá
contínuos – só resta uma vida de frustração, desânimo, tristeza e depressão,
estas sim, talvez contínuas. Nosso corpo é palco de uma guerra interna. Nesta
disputa dialética, não há vencedores. Esta é a lição existencialista de
pensadores como Sartre, ou absurda, a partir de Kafka ou Camus: o que somos está
para ser lançado, não está dado, pode se transformar e necessariamente vai
transmutar, é na transfiguração que o ser, no tempo, se manifesta, razão pela
qual a existência, e toda sorte de iniqüidades, direitos e avessos emergirão,
restando que o que realmente somos, enquanto indivíduos, é um processo
ininterrupto, onde as regras do jogo são construídas no próprio jogar, jogo de
estratégias e improvisos, no palco que é a vida, peça teatral sem ensaio
prévio. Independentemente da concretização de nossos objetivos mais ternos, a
felicidade e a tristeza virão em doses desiguais, restando alocar a vida, e o
sentido que queremos construir para ela, fora, além, muito além desta dualidade
limitada e egoísta entre prazer e sofrimento, entre felicidade e tristeza,
entre gozar e brochar. Não nos esqueçamos: no paraíso que projetamos
virtualmente para nossas vidas pode se esconder o inferno do qual tentamos
sempre nos afastar. Este inferno, indo contra o filósofo já citado, não é os
outros: somos nós, nós mesmos, do eu para o consigo.
3 – Disse o grande poeta português que a arte é uma prova
(cabal, diria eu) de que a vida não basta. Com isso quis dizer que a vida só se
preserva na eterna novidade do devir. O que eternamente-retorna igual e
idêntico, e a arte o comprova, é o íntimo desejo humano por reorganizar a
natureza e a vida, conferindo-lhe um pouco de si, um pouco da parcela de sua
personalidade, um pouco de sua criatividade, ocultada historicamente por tantos
procedimentos cruéis de dominação da subjetividade. Estando sempre para ser
construída ou reconstruída, a vida é o espelho da arte: as demandas
existenciais da vida são a prova de que a arte, por si só, já é capaz de
reorganizá-la. Então deixemos de lado esta postura meramente contemplativa para
com a obra de arte. A obra de arte é a prova de que a vida de alguns seres
humanos não lhes bastava, e que, para que se bastasse em sua angústia
existencial (que também eternamente lhes retornava), resolveram forjar um novo
universo, criando novas formas de viver e de encarar a vida, a partir da
reorganização das matérias-primas (físicas e emocionais) mais singelas. A lição
da arte é que a arte extravasa seus próprios limites: a arte só é arte porque,
ao mesmo tempo que é trancafiada num museu antiquado, faz política, faz
mentalidades, faz subjetividades, faz governos, faz nações, faz culturas, faz
todo tipo de criações necessariamente humanas. Então a própria vida talvez
seja, em cada ser humano – se decidirmos encarar a todos como artistas – a maneira
segundo a qual cada um escolheu fazer arte. Lembro-me de Augusto Boal quando
diz que ser humano é ser teatro: antes de mais nada, agimos. A ação torna a
todos atores. Mas nossa ação não possui roteiros, então improvisamos. Sendo
atores improvisadores, somos ao mesmo tempo roteiristas. Também figurinistas, despindo-se
e vestindo-se tantas vezes ao dia que só faz sentido analisar nossas pequenezas
sob este viés cênico. Ao final, não há quem nos dirija (embora Boal soubesse,
como eu e você sabemos, de todos os aparatos de dominação e opressão que
existiram durante a história da humanidade). Mas com isto queria infundir outra
lição existencial: angustiadamente jogados no palco da vida, é preciso que
dirijamos as nossas próprias ações. O final do espetáculo pode infundir
sensações e emoções indizíveis em nossa plateia – e nós temos total
responsabilidade quanto a isso.
4 – Perpetuar a espécie é um tipo de discurso malévolo que
nos faz pensar que é mais importante e divertido ter filhos que são iguaizinhos
a nós mesmos (em defeitos e qualidades) do que participar de um novo tipo de criação
de indivíduos, no sentido de um engajamento maior e coletivo na criação
daqueles seres humanos que enfrentam dificuldades existenciais como fome, sede,
desnutrição, ausência de afeto. Há por aí uma parcela imensa de indivíduos
carentes de amor: eu e você somos dois exemplos pequenos desta imensidão. Há
por aí uma parcela gigantesca de indivíduos carentes de tudo: amor, afeto, carinho,
acesso, chance, convicção, coragem, comida, água, cobertores, banhos, educação,
oportunidades, arte, emoção. Poucos países não possuem pelo mesmo um indivíduo
que se encaixe nesta categoria. Então pergunto: por que encerrar nosso
potencial de educadores neste movimento narcísico que é a perpetuação de si
mesmo, do eu, do ego, numa miniatura de nós, com nossa carga genética, e com a
herança de se sentirem obrigadas a serem, senão melhores, pelo menos iguais a
nós, em conquistas e frustrações? Será que nas creches, nas favelas, nas
grandes casas ricas da elite que se trancafia a si mesma em condomínios, nas
ruas, nas escolas, nos asilos, nas prisões, não existe uma porção imensa de
seres humanos aguardando, ansiosa e angustiadamente, por aqueles que vão
auxiliar em sua criação, e em sua constituição enquanto seres, efetivamente,
humanos?
5 – Nunca duvidemos da parcela de amor e ódio que cada ser
humano carrega dentro de si. Não nos esqueçamos, sobretudo, de que o amor e o
ódio apenas dependem de estímulos para se colocarem no mundo e se
multiplicarem. A vida de ódio gera apenas mais ódio, e esta confabulação
energética não é apenas o que se pode chamar de coincidência, ou biodinâmica
físico-molecular, ou cinética química. O gesto de amor é tão avassalador quanto
o gesto de ódio. Aliás, o amor é tão ou mais violento que o ódio: mais violento
no sentido de abalar com muito mais vigor a ordem estabelecida. Cada atitude,
cada comportamento que inspire o amor, ou que seja sincero em transparecer o
amor que nutre e legitima sua ação; e, da mesma forma, cada comportamento que
inspire o ódio, ou que seja sincero em transparecer o ódio que nutre e legitima
sua ação; ambos, enfim, possuem a mesma potência criadora. E podemos
rapidamente ir a dois extremos ilustrativos desta colocação objetiva: Hitler e
Gandhi. Quem foi mais violento? Foucault, Zizek e eu achamos que foi o segundo.
O motivo é simples: ele mostrou que a guerra pode ser feita com a paz, e isto
mudou todo o jogo das relações políticas e econômicas do poder neocolonial
estabelecido.
6 – As drogas mudam a vida das pessoas. Mas não são culpadas
ou responsáveis pelo bem ou mal que causam na vida destas mesmas pessoas. Ser
responsável para consigo e para com o mundo significa dosar que tipo de vida
teremos, e qual o lugar das drogas nesta modalidade de viver que erigimos para
nós mesmos. Contra toda sorte de preconceitos, saibamos que cada droga possui
sua história de vida e seus contributos para o ódio e o amor, para a guerra e a
paz, para a economia e a política. Mas, sempre se trata de seres humanos: do
mais simples ao mais complexo, da Revolução Francesa à colocação de Margaret
Tatcher de que “não existe, de modo algum, algo como a sociedade”, da guerra
mais sanguinária, do holocausto e das bombas atômicas – às poesias mais doces,
aos goles de vinho mais enamorados, aos sexos mais amorosamente bem feitos, do
estado de consciência racional ao estado de consciência transindividual
alucinógeno: sempre se tratam de seres humanos. Esta tese não é bem sobre
drogas, é para nos atentarmos de que estamos falando de seres humanos, seres
humanos, e aquém ou além de qualquer antropocentrismo ignorante para com a
vida, é para que nos lembremos que falamos de criação, sensibilidade, medo e
arte, talvez alguns caracteres elementares na vida de seres humanos
radicalmente diferentes.
7 – A vida não é apenas
dinheiro, fama, luxo, felicidade, ciência, arte, beleza, progresso,
perseverança, verdade, benemérito, ordem, economia, política,
produção-reprodução, dominação, emancipação, opressão, guerra, amor, ódio,
emoção, projeto de poder. O que melhor caracteriza a vida é sua parcela
inominável. O mais sincero da vida é o inominado, o anonimato. No mudo, no surdo
e no cego do cotidiano, a vida se confabula magicamente num entrelaçamento de
existências, sejam humanas ou inumanas, cuja graça efêmera é inefável. Não pode
ser dita, nem desdita, porque é indizível. Nos cala, mas também nos ensurdece e
cega. É que vivemos, estamos condenados a viver, e caso queiramos o gozo
absoluto da morte de maneira antecipada, deixaremos de vasculhar seu misterioso
enigma, que não possui mapa, e cuja aventura é feita de encontros imprevisíveis
e desencontros impensados. Numa cartografia da incerteza, vamos assinalando o
caminho com nossos próprios passos, porque já diria Antônio Machado que o
caminho é propriamente as marcas que nossos pés deixaram. Inexistindo algo que
nos gere um conforto que conduza a inércia, o Sol, ritualizado por tantas
gerações como Deus abençoado, simboliza, deitado no horizonte, a necessidade
mais vital da vida: continuar caminhando.