domingo, 15 de novembro de 2009

A crise institucional da Justiça e a crise individual da moral





A Justiça e a moral são objetos de inúmeras definições, conceituações e críticas. São, foram e continuarão sendo, dada a amplitude de seu conteúdo. Essa dissertação, no entanto, não buscará, historicamente, os inúmeros conceitos que elas adquiriram, mas constatar sua crise e propor meios viáveis para sua superação.

Nossa Justiça é, na maioria das vezes, injusta. Sua parafernália, seus aplicadores, seu estudo, nada parece romper com a barreira tecno-burocrática que existe entre ela e aqueles que dela necessitam. A dinâmica que faz o maquinário da Justiça funcionar não concorre com o tempo cotidiano da vida humana. Os prazos; as formalidades; os discursos retóricos e vazios; as litigâncias de má-fé; o uso inescrupuloso das várias instâncias recursais só fazem pensar que o dito “impulso oficial” é muito fraco, fazendo com que o processo não se locomova célere e economicamente. Isso significa que a Justiça – enquanto instituição sócio-política que se pretende democrática – está em crise.

A moral que dita nossas atitudes, de maneira semelhante à Justiça, também é muitas vezes imoral, por mais contraditória que essa afirmação possa parecer. O conhecido “jeitinho brasileiro” funciona como uma ética do malandro, com a qual as atitudes e escolhas humanas dos componentes de nossa nação se tornam o meio para a concretização de anseios individualmente egoístas. Não importam a classe social, o poder aquisitivo, a função social, ofício ou trabalho realizados, tampouco a grandeza da carga ético-moral de determinadas atitudes: a todo tempo, nos mais diversos ambientes, das formais mais inesperadas possíveis, alguém tenta obter vantagem própria, prejudicando a outrem de maneira ativa ou passiva.

Esse posicionamento perante a vida e a sociedade faz salientar o fato de que o sistema vigente, no qual estamos inseridos, impõe-se de uma tal forma que cria a ilusão de que o importante e legítimo é justamente se dar bem, sair por cima, com o menor prejuízo possível. É como dizer que num sistema político-econômico pouco acessível e ditado por minorias como é o nosso, excludente e corporativista, atitudes imorais acabam ganhando carga de logicidade na medida que compactuam intrínseca ou extrinsecamente com o sistema que se impera perante nossos olhos e por sobre nossas necessidades.

A moral só existe porque o homem não expressa espontaneamente suas virtudes. A Justiça só se formalizou porque o homem não se relaciona com seu semelhante de maneira justa. Essa crise de dupla face constantemente evidenciada nos estudos científicos da sociologia jurídica, que borbulha na sociedade dos jeitos mais variados, introjetada em nossa cultural a ponto de se arraigar em nosso caráter, possui uma solução?

Inúmeros pensadores se fizeram essa pergunta. Muitos deles acreditam realizar faticamente posturas que vão contra essa lógica absurda, como o Juiz Souto Maior em suas sentenças, ou mesmo como o escritor José Saramago e o sociólogo Boaventura de Sousa Santos em suas obras. Com relação à crise institucional da Justiça, que nos é muito perceptível, a solução parece clara, embora difícil de ser posta em prática. Isso porque reformas processuais; modificação de ritos procedimentais; contratação de mais profissionais, com maior capacitação, apenas farão o problema se expressar de maneira distinta, no qual a forma será diversificada, mas seu conteúdo permanecendo o mesmo. O que nos leva a pensar que o Direito, de maneira diametralmente oposta ao pensamento dominante, precisa ser diminuído em vez de aumentado.

Ou seja, a crise institucional da Justiça só será solucionada quando seu campo de atuação for restringido, quando diminuída a sua competência, quando o direito – e não apenas o direito estatal – puder ser utilizado como instrumento de transformação sem a necessidade de atender os desejos da Lei, do Estado, do costume. O pluralismo jurídico, constatado por Boaventura e investigado por Wolkmer, comprova que a solução para esse problema institucional apenas pode ser encontrado fora da própria instituição. Uma democracia a serviço da Justiça, ou uma Justiça a serviço da democracia, deve prescindir de espaços próprios para ser concretizada e realizada. Deve sair dos fóruns e ir às ruas. Também deve prescindir de técnicos específicos, mas privilegiar a atuação dos cidadãos e a solução do litígio por meio da transdisciplinaridade.

É o caso da Justiça Restaurativa, que busca colocar a situação problemática abordada como um fato consumado, na tentativa de restaurar às partes as condições nas quais se encontravam antes do problema. Com essa Justiça, democratiza-se o espaço de realização e busca da justiça como imperativo ético-existencial.

Mas isso só será possível quando pudermos, antes de tudo, nos libertarmos da tentação de ir contra uma moral vigente. O filósofo Nietzsche, crítico da moral, salientava que num mundo onde as virtudes fossem exortadas espontaneamente, um sistema moral seria desnecessário. A moral está posta e nos é imposta, mas não nos atingirá quando tomarmos consciência de que nossas atitudes e escolhas são voltadas para o futuro e possuem como reflexo o mundo em crise que vemos nos noticiários e estudamos com as ciências.

Essa postura de ser o humano o próprio responsável pelo mundo que possui, mundo este composto pelos milhões de atitudes e escolhas realizadas a todo momento, parece ser a sentença do filósofo Sartre quando de seu julgamento do homem situado em seu mundo: o próprio humano – considerado individualmente quanto a sua capacidade de escolha, mas estruturado coletivamente quanto às consequências que suas escolhas geram – é o primeiro e último responsável pelas mazelas que acometem as diferentes instituições que formam o nosso mundo. E só depende dele a mudança, pois no dizer de Sartre, “não importa o que fizeram do homem, mas o que ele fez do que fizeram dele”. O nosso agir cotidiano e não-sistemático é o que fazemos em relação ao que fizeram de nós.

domingo, 8 de novembro de 2009

O apego à forma em nosso tempo...

Um dos maiores problemas do direito moderno é, sem dúvida, o formalismo. Enquanto diferentes doutrinadores afirmam que a forma é a característica essencial e imprescindível de inúmeros atos processuais, os indicadores sociais e estatísticos evidenciam que os excessos de formalidades tornam inviáveis e ineficazes certas projeções ético-políticas contidas em nossas normas.

No mesmo sentido, o próprio legislador comete um ato falho quando permite que se tramitem leis cujo conteúdo versa mais sobre solenidades do que sobre procedimentos efetivos para a disputa e conquista de direitos. Nesse interregno, a academia acaba por afastar do estudo científico do direito a filosofia, a sociologia e a política. Isso porque os próprios professores encontram-se viciados com a formalidade dogmática de nossa legislação, lecionando sem elasticidade e interdisciplinaridade.

Os ensino jurídico de nossas academias não ensina a pensar e articular as leis de forma criativa; ao contrário, apenas apresenta uma rede de normas contidas em artigos que, quando muito, se combinam e formam cadeias processuais que devem ser usadas na prática forense.

No entanto, nem todo ordenamento jurídico se mostra rígido e imutável. A Lei n. 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, quebrou com o paradigma formal dos processos civil e penal ao tornar imprescindível a utilização da oralidade, visando uma maior celeridade nos trâmites processuais, de modo a tornar a prestação da tutela jurisdicional do Estado mais efetiva e segura.

Assim devem agir os professores das academias que pretendem ensinar o direito: com liberdade, audácia e informalismo. De uma maneira que, ao mesmo tempo que se aproxima da intimidade intelectual dos alunos, não deixa de ser científica, fomentando idéias mais criativas para o manejo de nossas leis.