terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O todo de um vazio


Todas as palavras já foram ditas,
Mas nem todos os discursos foram feitos.
Há uma náusea da consciência plena,
Que é o sentimento de impotência diante da nossa natural incapacidade
Em vislumbrarmos e praticarmos um mundo que mais nos convém.

Olhar o todo, sentir o todo e ter a impressão de que entende o todo,
Interpretar o todo de tal maneira que todas as nossas atitudes pareçam fazer sentido,
Sentir o todo, vivê-lo em mínimos detalhes prazerosos e nos marcos transbordantes,
Achar que se é parte dentro do todo, ter tido fé nas religiões e nas filosofias,
Viver plenamente e descobrir por fim que nenhuma de nossas atitudes foi tão considerável.

Ensinaram-me a ter esperanças para que não padecesse,
Mas agora me questiono quanto à necessiadade de adoecermos
Para que só assim consigamos enxergar pela outra perspectiva:
A humilde e complacente perspectiva que está fora da esfera arrogante da consciência.

A consciência é a fonte de nossa arrogância
Unicamente pelo fato de nos tornar parte
De uma totalidade aparentemente discursável.

Viver não basta. É preciso expressar ao mundo as nossas emoções.

E depois de milênios de civilização,
Diante da insistência cega das ciências,
Que defendem, com seus discursos simbólicos e mágicos,
A possibilidade de extirparmos o sofrimento da existência
Ainda chega a nós o conhecimento de que alguns existem sem existir.

Vivem sem o pão e choram sem as lágrimas.

E depois de todos terem me castrado e me feito acreditar nessas coisas,
Depois de tanta fé que depositei na tentativa de qualquer algo de melhor,
A única coisa que resta no peito humano é uma constante dor de não se saber.
E, nessa angústia, criar nomes e expressões para tudo o que sente.

Então, por agora, eu penso que a solução para essa conjuntura humana terrível,
Para esse absurdo cotidiano do inexplicável,
Pode estar fora do discurso. Fora da ciência, da fé e da filosofia.
Fora daquilo que foi considerado humano.

Fora destas palavras.
Fora da sensação que elas até então vem causando.
Fora do contato que nunca teremos.

A solução está fora do nosso alcance,
E há um motivo muito maior do que pode presumir nossa arrogante consciência
Para que as existências concretas e imateriais da vida
Venham se estruturando dessa forma inevitável.

domingo, 15 de novembro de 2009

A crise institucional da Justiça e a crise individual da moral





A Justiça e a moral são objetos de inúmeras definições, conceituações e críticas. São, foram e continuarão sendo, dada a amplitude de seu conteúdo. Essa dissertação, no entanto, não buscará, historicamente, os inúmeros conceitos que elas adquiriram, mas constatar sua crise e propor meios viáveis para sua superação.

Nossa Justiça é, na maioria das vezes, injusta. Sua parafernália, seus aplicadores, seu estudo, nada parece romper com a barreira tecno-burocrática que existe entre ela e aqueles que dela necessitam. A dinâmica que faz o maquinário da Justiça funcionar não concorre com o tempo cotidiano da vida humana. Os prazos; as formalidades; os discursos retóricos e vazios; as litigâncias de má-fé; o uso inescrupuloso das várias instâncias recursais só fazem pensar que o dito “impulso oficial” é muito fraco, fazendo com que o processo não se locomova célere e economicamente. Isso significa que a Justiça – enquanto instituição sócio-política que se pretende democrática – está em crise.

A moral que dita nossas atitudes, de maneira semelhante à Justiça, também é muitas vezes imoral, por mais contraditória que essa afirmação possa parecer. O conhecido “jeitinho brasileiro” funciona como uma ética do malandro, com a qual as atitudes e escolhas humanas dos componentes de nossa nação se tornam o meio para a concretização de anseios individualmente egoístas. Não importam a classe social, o poder aquisitivo, a função social, ofício ou trabalho realizados, tampouco a grandeza da carga ético-moral de determinadas atitudes: a todo tempo, nos mais diversos ambientes, das formais mais inesperadas possíveis, alguém tenta obter vantagem própria, prejudicando a outrem de maneira ativa ou passiva.

Esse posicionamento perante a vida e a sociedade faz salientar o fato de que o sistema vigente, no qual estamos inseridos, impõe-se de uma tal forma que cria a ilusão de que o importante e legítimo é justamente se dar bem, sair por cima, com o menor prejuízo possível. É como dizer que num sistema político-econômico pouco acessível e ditado por minorias como é o nosso, excludente e corporativista, atitudes imorais acabam ganhando carga de logicidade na medida que compactuam intrínseca ou extrinsecamente com o sistema que se impera perante nossos olhos e por sobre nossas necessidades.

A moral só existe porque o homem não expressa espontaneamente suas virtudes. A Justiça só se formalizou porque o homem não se relaciona com seu semelhante de maneira justa. Essa crise de dupla face constantemente evidenciada nos estudos científicos da sociologia jurídica, que borbulha na sociedade dos jeitos mais variados, introjetada em nossa cultural a ponto de se arraigar em nosso caráter, possui uma solução?

Inúmeros pensadores se fizeram essa pergunta. Muitos deles acreditam realizar faticamente posturas que vão contra essa lógica absurda, como o Juiz Souto Maior em suas sentenças, ou mesmo como o escritor José Saramago e o sociólogo Boaventura de Sousa Santos em suas obras. Com relação à crise institucional da Justiça, que nos é muito perceptível, a solução parece clara, embora difícil de ser posta em prática. Isso porque reformas processuais; modificação de ritos procedimentais; contratação de mais profissionais, com maior capacitação, apenas farão o problema se expressar de maneira distinta, no qual a forma será diversificada, mas seu conteúdo permanecendo o mesmo. O que nos leva a pensar que o Direito, de maneira diametralmente oposta ao pensamento dominante, precisa ser diminuído em vez de aumentado.

Ou seja, a crise institucional da Justiça só será solucionada quando seu campo de atuação for restringido, quando diminuída a sua competência, quando o direito – e não apenas o direito estatal – puder ser utilizado como instrumento de transformação sem a necessidade de atender os desejos da Lei, do Estado, do costume. O pluralismo jurídico, constatado por Boaventura e investigado por Wolkmer, comprova que a solução para esse problema institucional apenas pode ser encontrado fora da própria instituição. Uma democracia a serviço da Justiça, ou uma Justiça a serviço da democracia, deve prescindir de espaços próprios para ser concretizada e realizada. Deve sair dos fóruns e ir às ruas. Também deve prescindir de técnicos específicos, mas privilegiar a atuação dos cidadãos e a solução do litígio por meio da transdisciplinaridade.

É o caso da Justiça Restaurativa, que busca colocar a situação problemática abordada como um fato consumado, na tentativa de restaurar às partes as condições nas quais se encontravam antes do problema. Com essa Justiça, democratiza-se o espaço de realização e busca da justiça como imperativo ético-existencial.

Mas isso só será possível quando pudermos, antes de tudo, nos libertarmos da tentação de ir contra uma moral vigente. O filósofo Nietzsche, crítico da moral, salientava que num mundo onde as virtudes fossem exortadas espontaneamente, um sistema moral seria desnecessário. A moral está posta e nos é imposta, mas não nos atingirá quando tomarmos consciência de que nossas atitudes e escolhas são voltadas para o futuro e possuem como reflexo o mundo em crise que vemos nos noticiários e estudamos com as ciências.

Essa postura de ser o humano o próprio responsável pelo mundo que possui, mundo este composto pelos milhões de atitudes e escolhas realizadas a todo momento, parece ser a sentença do filósofo Sartre quando de seu julgamento do homem situado em seu mundo: o próprio humano – considerado individualmente quanto a sua capacidade de escolha, mas estruturado coletivamente quanto às consequências que suas escolhas geram – é o primeiro e último responsável pelas mazelas que acometem as diferentes instituições que formam o nosso mundo. E só depende dele a mudança, pois no dizer de Sartre, “não importa o que fizeram do homem, mas o que ele fez do que fizeram dele”. O nosso agir cotidiano e não-sistemático é o que fazemos em relação ao que fizeram de nós.

domingo, 8 de novembro de 2009

O apego à forma em nosso tempo...

Um dos maiores problemas do direito moderno é, sem dúvida, o formalismo. Enquanto diferentes doutrinadores afirmam que a forma é a característica essencial e imprescindível de inúmeros atos processuais, os indicadores sociais e estatísticos evidenciam que os excessos de formalidades tornam inviáveis e ineficazes certas projeções ético-políticas contidas em nossas normas.

No mesmo sentido, o próprio legislador comete um ato falho quando permite que se tramitem leis cujo conteúdo versa mais sobre solenidades do que sobre procedimentos efetivos para a disputa e conquista de direitos. Nesse interregno, a academia acaba por afastar do estudo científico do direito a filosofia, a sociologia e a política. Isso porque os próprios professores encontram-se viciados com a formalidade dogmática de nossa legislação, lecionando sem elasticidade e interdisciplinaridade.

Os ensino jurídico de nossas academias não ensina a pensar e articular as leis de forma criativa; ao contrário, apenas apresenta uma rede de normas contidas em artigos que, quando muito, se combinam e formam cadeias processuais que devem ser usadas na prática forense.

No entanto, nem todo ordenamento jurídico se mostra rígido e imutável. A Lei n. 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, quebrou com o paradigma formal dos processos civil e penal ao tornar imprescindível a utilização da oralidade, visando uma maior celeridade nos trâmites processuais, de modo a tornar a prestação da tutela jurisdicional do Estado mais efetiva e segura.

Assim devem agir os professores das academias que pretendem ensinar o direito: com liberdade, audácia e informalismo. De uma maneira que, ao mesmo tempo que se aproxima da intimidade intelectual dos alunos, não deixa de ser científica, fomentando idéias mais criativas para o manejo de nossas leis.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Por que sorrir?




Sorrir, sorrir por toda dor que não foi sofrida em vão, sorrir pelo calor feliz do sol e pelo molhado sábio das lágrimas. Sorrir pelo que passou e que tem toda a chance de retornar, sorrir pelo necessário fim, que faz com que a vida seja tornada maravilhosa a cada pequeno detalhe. Sorrir pela simplicidade de um sorriso sincero, sorrir pelo símbolo maior do sentimento maior humano, sorrir com a felicidade e o brilho dos olhos de uma criança.

Sorrir por todo o trabalho realizado, sorrir para não padecermos diante das certezas tristes, sorrir, não para que esqueçamos todo o sofrimento, todas as bombas, todas as guerras e todo o sangue, mas sorrir para que tenhamos a capacidade de ser um futuro melhor hoje. Sorrir por tudo aquilo que já se foi, sorrir, porque a infinitude não possui a graça do efêmero.

Sorrir por toda a intimidade compartilhada com aqueles que amamos, sorrir pela incansável insistência das flores, que nascem no asfalto, no deserto, diante do absurdo, da morte desnecessária e diante de toda a dor que o ser humano causa em si mesmo e naquilo que é natural.

Sorrir porque as lágrimas se acabaram todas, despejadas diante de uma tristeza tão infinita que não pode mais ser enfrentada senão com a delicadeza, a sensibilidade e a compreensão. Sorrir por aquilo que valeu a pena, sorrir pelo que pode valer a pena, sorrir inclusive para que tudo o que não vale a pena possa adquirir um pequeno encanto.

Sorrir pela força, sorrir pela energia, sorrir pela superação, sorrir pela conquista de tudo aquilo o que não pode ser dominado ou controlado, sorrir pelo que pode ser conquistado através do amor, da beleza e do encanto, sorrir pelo que é conquistável por meio da permissão.

Sorrir para que possamos nos permitir sorrir.

Sorrir pelas pessoas que caminham sozinhas na rua, sozinhas em seus pensamentos conjuntos, sorrir pelas aves que voam e nos lembram que somos humanos, e portanto impotentes.

Sorrir pela liberdade que é tanta que chega a sufocar, sorrir pela angústia e por todas as terríveis sensações inexplicáveis, sorrir pelo pânico e pelo desespero, sorrir pelo aprendizado que os maus momentos nos trazem. Sorrir pelo tempo, sorrir pela memória e pelas lembranças, sorrir pelos nossos avós, os mortos e os vivos.

Sorrir, porque chorar é muito pouco.

Sorrir, não por apelo, por necessidade ou pela terrível e sistemática obrigação de sermos felizes, mas sorrir por aquilo que machuca, sorrir por aquilo que nos lembra da nossa frágil condição, sorrir pelo amor poder ser expressado através do toque de dois lábios, expressado pelo canto de dois pássaros, expressado nos passos que não são solitários.

Sorrir pelo momento mais nosso que é a solidão, sorrir pelo amor próprio e para o bem alheio, sorrir como uma oração necessariamente diária, sorrir pelo agradecimento, não pela piedade ou pela culpa, mas sorrir pela coragem. Admitir que o sorriso é uma postura política diante das mazelas.

Sorrir de forma consciente, sorrir e estender as mãos, sorrir e ceder a roupa do corpo, sorrir e permitir que alguém não sorria, sorrir depois de literalmente chorar nos ombros de um amigo. Sorrir porque nasceu um filho, sorrir para demonstrarmos aos nossos pais que seus esforços valeram e valem a pena.

Sorrir, porque se não sorrirmos, as luzes se apagarão. Sorrir, porque se não sorrirmos, pode ser que deixemos de ser. Sorrir pelo ódio, que foi incapaz de deter a sensação pura que assistir ao vôo de uma borboleta causa. Sorrir pela duração imensurável de um momento inesquecível, sorrir pela momentaneidade da vida e da existência.

Sorrir, porque existir também é pouco.

domingo, 2 de agosto de 2009

Insensações

"Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e ignoro todas tentativas de aproximação. Tenho vergonha de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso.

A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão."


Caio Fernando Abreu

quinta-feira, 16 de julho de 2009

O Brasil e a manobra de massas




= Leia "A pizzaria federal" de Luciano Martins Costa no Observatório da Imprensa. =



O Lula imortalizou seus 8 anos de governo com uma simples e singela frase: "todos eles [senadores] são um bando de pizzaiolos".

Jura que não escutou? Puts, baixa daqui então.

Bom, se no Senado, uma das casas do Poder Legislativo, tudo acaba em pizza, é natural que haja pizzaiolos.

E muitos, pois a doutrina da pizza impera: todos os jantares são pizza e conversas sobre novas políticas de controle e manobra de massas.

Manobrar massas.

Não fiquem surpresos se, nesse clima de xingamentos eufêmicos, o STF emita uma nota dizendo que se no senado todos são um bando de pizzaiolos, seria lógico dizer que no executivo todos são um bando de padeiros.

No executivo só tem padeiro porque tudo acaba em sonho.

Mas tranquilo, não tem problema. É só uma má fase.

Os padeiros e pizzaiolos discutem, trocam desaforos. Mas no fim das contas, tudo acaba em manobra de massas...

Padarias, pizzarias... Por que não resumimos o Estado a uma Panificadora logo duma vez?!

Sonho e pizza, pelo menos sem burocracia.



E lembre-se: #twitterconsciente

terça-feira, 14 de julho de 2009

Athanis, um rapaz helênico

Um belo dia, quer dizer, num dia chuvoso e frio, daqueles que dá muita carência e muita vontade de fazer sexo, meu pai e minha mãe tiveram a brilhante idéia de realizar concretamente o prazer sem contudo se utilizarem de instrumentos hábeis a inviabilizar o contato entre um espermatozóide e um óvulo. Ou seja, deram uma sem usar camisinha nem anticoncepcionalzinho...

A consequência foi agradavelmente desagradável. Agradavelmente, porque teve como meio o inefável gozo da carne. Desagradável porque teve como fim:

Como vamos chamar o menino? Vamos dar um nome diferente pra ele, não acha?

Adonis, Nathan... e se a gente misturar? Athanis, que lindo!

Bem, desde então, cartórios, burocracias, tosses e 20 anos de desgosto se passaram.

Nesse meio tempo, as pessoas têm me chamado de tudo, menos de Athanis. Denis, Atênis, Atenas, Antenas, Antunes, Até Ânus, Adanis, Tens, Tênis, Apênis, Apêndice, e uma série de outras alcunhas cuja lembrança me faz rir, mas cuja audição me fez ficar exacerbadamente desgostoso com a vida.

Entenda-se: puto com essa merda de idéia dos meus pais.

Mas tem lá suas vantagens chamar-se Athanis. Não preciso, por exemplo, escrever athanisrodrigues_88_sp pra fazer um e-mail.

É sempre o bom, velho e singelo athanis@...

E é justamente fazendo uma brincadeira com meu nome que meu amigo J.J. Jey fez uma caracterização minha com um rigor humorístico muito elevado, fino e denso. Deixou um depo no orkut bem legal e engraçado:

"Meu amigo de nome helênico...

Obrigado. Você trouxe-me filosofia. Gênio irriquieto, causador eventual, poéta integral. Herdeiro dos renascentista, questiona; alinhado aos pós-modernos, nega; artista de alma, ama. Amo eu sua companhia. Carrega contigo a marca daqueles que não procuram respostas. Questão ontológica, respostas existem em razão de perguntas, essas sim, por você foram domadas. Pávil provocador, é gatilho intelectual que a tantos falta, que tantas vezes me falta (o gatilho e sua presença). Tudo teatro. Conhece o absurdo, dele tira proveito, goza e se diverte. Autêncio, tantas vezes divide comigo a angústia. Inevitável, meu caro. Como eu, ela também o ama. Política e filosofia, você disse. Amizade e carinho eu lhe devolvo. Convivemos juntos no surrealismo, no romantismo e até ao parnasianismo uma vez nos dirigimos. Mas o bucólico não é seu. Mais para o movimento, para o ritmo e para a frenesi. Bem perto da Arte. Pois que seja. O conjunto da obra é que me encanta. Obrigado."

Brincadeiras à parte, fica esse post dedicado aos meus pais, ao jey, e a tantas outras pessoas que me ajudam na construção do que eu acredito - luto e escolho - ser a minha identidade.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Epifania

Morrer é uma obra de arte.
Aceitar a morte é criar intimidade com ela.
Criar intimidade com algo terrível gera incômodo.
O incômodo que vem da intimidade da aceitação impele à atitude transformacionista.

Mas como transformar uma verdade aceita plenamente, como a morte?
Como discutir a morte sem antes encará-la como algo inevitável?
Como ter a plena certeza de que deixaremos de existir
E conseguir encarar o retorno à existência?

A experiência da quase-morte faz o humano perceber sua fragilidade.
A partir do momento que se descobre totalmente frágil
O humano aceita o mundo de modo a tornar-se íntimo dele.

E não o aceita apenas por suas coisas boas, prazerosas e estimáveis.
Mas justamente pelas coisas terríveis, absurdas e desprezíveis que concebem o mundo.

Deve-se aceitar a fragilidade de modo a torná-la íntima,
Aceitar a fragilidade e usá-la como um discurso pró-vida,
Aceitar a fragilidade e enxergar o outro como idêntico
(E Não um igual, ou semelhante, ou próximo, ou irmão),
Aceitar a fragilidade e indignar-se com a sistemática tentativa de tentar afastá-la,
Aceitar a fragilidade como negação dos discursos do poder, da segurança, da verdade,
Aceitar a fragilidade como contrapartida da morte,
E não como contrapartida da vida.

Aceitar e se encontrar frágil.
Aceitar e se identificar frágil.
Aceitar e se descobrir - nas mínimas atitudes, escolhas e gestos - frágil.

Ser frágil como imperativo político-existencial.
Ser frágil da maneira mais simples e transformadora.

Enxergar o outro como idêntico-frágil.

Fragilmente existir.
Fragilmente viver.
Fragilmente ser.

A propriedade privada, o lucro e a acumulação são a negação da fragilidade.
Prova de sua existência.

Não é preciso que pintemos o quadro da vida apenas em contato com a quase-morte.
Morrer é a obra de arte daquele que viveu segundo a verdade natural
De que se o bem não for realizado, não teremos outra chance para fazê-lo.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Desiludir-se

As ilusões são necessárias como projetos bem sucedidos de impossibilidades.
Pensam que a mudança é uma doce ilusão.

Horrível pensar que para se transformar é necessário
Que se reafirme algo projetado no passado ou no futuro.

O passado e o futuro como projetos são a negação do presente.

Passado e futuro deveriam ser afirmações faticamente plenas e paupáveis,
Probabilidades estatísticas da ocorrência de fatos empiricamente comprováveis.

E o presente, este sim, se tornar projeto.
Projeto não como projeção, projeto não como afastamento temporal.
Projeto não como a pretensão de se tornar o algo projetado.
Projeto não como a estipulação de regras e princípios norteadores de existências.

O projeto é a inversão do devir em jazer.
Não um, nem outro, mas justamente o exato instante de inversão.

Imagine o projeto como ponto de mutação.
Não como momento, não como encadeamento processual de procedimentos transformistas.

Imagine o projeto como o agir auto-consciente daquele que encara o absurdo.

O presente como projeto é subsumir o absurdo da vida a um quadro de escolhas responsabilizáveis.

Neste sentido, o absurdo da vida é composto de quadros de escolhas irresponsáveis.
Impossibilitadas de serem responsabilizadas porque nasceram da ausência de auto-consciência.

O projeto é o oposto do absurdo.

O projeto não tem a pretensão de negar ou solucionar o absurdo.
É tão somente a sua concretização oposta.

A mudança, realizada desse modo, é uma doce desilusão.

Desilusão é tornada o projeto bem sucedido de possibilidades.
É a negação da ilusão como o conforto daquilo projetado no passado ou futuro.

Perante o presente como projeto, o único sentimento possível é de desilusão
Ante a capacidade auto-conscientizada de que,
Uma vez o presente seja tornado projeto,
O que será e o que já foi são amputados do fluxo de acontecimentos.

O projeto torna totalmente possível qualquer forma de presente.

O projeto concede ao ser desiludido a capacidade
De agir de forma consciente e responsável dentro do absurdo da vida,
Opondo o projeto ao absurdo. Sem negá-lo, mas apenas ausentando-o.

Negar o absurdo seria uma ilusão.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Segredo da concha

Uma poesia é verdadeiramente bela
Não por todas as coisas que disse,
Mas justamente por aquelas que, dizendo,
Acabou deixando de dizer.

Tem me faltado esse desabafo.
Tem me faltado a ausência alheia para o encontro consigo.
Tem me faltado essa solidão tão importante para que realmente sejamos.
Tem me faltado palavras para descrever coisas talvez inexprimíveis.
Tem me faltado a audácia para tentar descrevê-las.

E o que tem me sobrado é razão.

Tem me faltado a presença constante de pessoas as quais odeio.
Tem me faltado descrétido em relação a mim mesmo.

Sobra-me certezas.

Tem me faltado descontrole.
Tem me faltado lágrimas por motivos bestas.
Que chorar, essa ocasião tão especial, só faço se valer a pena.

Mas lágrima, que não poderia deixar de ser lágrima,
Só é realmente para ocasiões que não as merecem,
Sob pena de só chorarmos para aquilo que aos nossos olhos vale a pena.
Se a gente chora, é justamente porque não mais vale a pena.
Valesse e cantaríamos.

Tem me faltado paciência.
Tem me faltado uma saúde plena.
Tem me faltado tantos esportes e tantos exercícios físicos.
Tem me faltado o prazer de estar só, de mim para consigo.

O que me sobra é coisa demais.
Tão mais que transborda,
E a cada transbordada,
Vem a pobre razão achar que pra tudo há ciência.

Se eu realmente tivesse certeza de alguma coisa,
Escreveria para que ninguém lesse.
Afinal, se escrevo e leio, é porque tenho a fé de que a verdade nunca chegará.
Chegasse e se acabaria o mundo.

Isso é o que tem me faltado:
A inexplicável coceira que sofre a curiosidade
Quando o sentimento se resume ao mistério.
Sentir o mistério.
Ser o mistério.
Querer o mistério.
Porque o mistério é sim verdadeiro.

Tem me faltado mistério.
Tem me sobrado palavras ordenadas em versos.

Caos é a única coisa que realmente está infincada
Nos cérebros e corações da humanidade, apenas pela força do hábito.
Não fosse o caos, não tentaríamos nos ordenar.
Fosse uma ordem singelamente e timidamente imposta,
Para vir um louco suficientemente audaz
E desafiá-la toda.

Arrepio do lado esquerdo.
E mistério nas juntas.
Tem me faltado a dúvida de ser o que sou.
Me sobrado o achismo de o saber.
Não fossem os saberes meros achares,
Erros não haveriam para que nos construíssemos.

A vida se faz com erros.
Só a ciência consegue ser feita com acertos.
O importante é o mistério,
Guardado em cada olhar transeunte da existência,
Viagem de ida, ferida composta.
Fosse uma única dor
E já não saberíamos qual o prazer de viver.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Você se expressa em forma de eu, viu no que deu?






Talvez eu não queira vencer na vida. Talvez eu não deseje ter dentes suficientemente brancos Colgate®. Vitória e brancura não deixam de ser juízos de valor.

E se eu não quiser amar uma pessoa pra sempre. E se eu decidir, por escolha – não por fuga, ou por medo, ou pela fuga que vem do medo – não acreditar no amor. E se minhas condições não forem perguntas, mas imposições afirmativas. E se esta frase, como todas as anteriores, não precisarem de ponto de interrogação.

Será que todas as obras de arte do mundo, distintas todas que sejam, não deixam todas de serem diários? É possível dissociar a arte de seu próprio artista? Um escritor, ou um pintor, ou até um músico, em algum momento, único que seja, não fará uma carta-colorida-e-musicada sobre suas mágoas incuráveis, suas bestas esperanças, suas bestas escondidas? E então, a emoção que a arte causa, em quem a cria, em quem a absorve, ponte de ligação, pleonasmo redundante, não é uma imitação do idêntico?

Pois eu duvido que não sintamos a mesma sensação. Sexo, Maconha, Samba com Feijoada, Picasso, Fernando Pessoa, Açaí, Massagem nos Pés, Futebolzinho de Noite encantam tantas pessoas porque causam inúmeras, inigualáveis-incontáveisinfinitas sensações ou simplesmente porque ativam justamente a mesma descarga hormonal em todos nós, os caras que acharam que eram o rei de tudo, teorema da complexidade, razão divina, construção, paz-amor-e-bala, metáfora, conhecimento, rei do próprio umbigo de olho no do outro.

Vai vendo hein cara, os dinossauros se foderam.

Mano, como eu vou dissociar o que eu escrevo do que eu sou? Eu tenho certeza que o Machado de Assis já comeu uma Capitu, que claaaaro, não se chamava Capitu, olhos-de-ressaca-sugestão, loira ou assim ou assado ou segredo, nem vou te contá-ar! É óbvio que o Johnn Lennon andou usando algumas drogas pesadas, não precisa o jornal doninho-da-verdade-que-ele-mesmo-criou vir me falar disso. Eu escuto o som, eu vivo o som, eu conheço pessoas que curtem o som, eu analiso essas pessoas, eu me analiso em convívio com elas, eu sei que drogas elas usam, eu sei quais os efeitos instantâneos e os colaterais, já escutei depoimentos, além de ter prazer na música, ter um ouvido atencioso, uma preferência refinada sem ser preconceituosa, uma noção vai... Eu sei o que tá rolando com a arte dos outros. E assim, com eles.

Será mesmo que o escritor que não consegue transcender seus paradigmas cai no sempre-mesmo, o erro-retornado? Será mesmo que eu, na minha condição de agente por trás da linguagem, que neste exato momento a instrumentaliza, mas ao mesmo tempo é por ela instrumentalizado, consigo construir uma arte dissociada do meu eu sem cair no controle total da linguagem que me instrumentaliza e me controla, e acha que me faz escrever o que ela quer, o que ela quer, ela quer, ela quer, quer, quer, quer?
Que puta dilema moral, mano!

O mais legal é incomodar quem fala certinho juntando gírias renegadas com palavras que causam impacto técnico, científico ou significativo.

Eu falar do jeito que eu quero não é ser ignorante, dá licença?

Eu também conheço o Ego-Superego-Id, eu sei fazer análise técnica em gráficos da Bolsa pra descobrir tendências, sim, eu cozinho muito bem, já li Dostoievski e Weber, já fui em umas quarenta e nove exposições no Masp, já peguei uma moça que era modelo e me entediei, sei dançar forró, sei o que significa Common Law, guardo dinheiro na poupança, e só porque eu falo “véio, cê ta tirano-né?” você é melhor que eu?

Vai se foder. Não sabe qual é a metade da caminhada.

Eu gosto de estar aqui quando comigo. Será mesmo que a arte é uma ponte de ligação de si para consigo mesmo, será a arte o único ente suficientemente e factivelmente democrático, posto que gera prazer sem cobrar, único jogo social humanóide que não tem como causa e conseqüência estabelecer-se uma relação de poder, onde um exerça domínio e outro padeça dormino?

DorminDooooooooooooooo! Eeeeeeeeeeerrrrrrrrrr...

Na terceira-série (digressão: porra, quase escrevi terçeira, irmão! Acho que é por causa de terça-feira, terceira, puta odeio que o Word tira o cedilha “errado” QUE EU QUERO COLOCAR!, terçeira), esse seria um comentário que causaria um sofrimento mórbido, as crianças, por ausência de personalidade já concretizada, cedem muito perante uma moral estabelecida pela maioria, ou mais admirados (admirados pela qualidade-defeito que você desejar, essa é a pira dos grupos sociais infantis) da turma.

Bom, e daí? Foda-se.

É que é engraçado, falam que a infância é a melhor idade, mas é mentira, é uma bosta, eu não transei quando era criança, eu não usei entorpecentes, eu não andei de montanha-russa, eu não senti a adrenalida de trocar socos com alguém enormemente maior, não senti a decepção de um amor que gera o maior tipo de calo que pode existir, calo na fé. Não conheci lugares lindos, pessoas maravilhosas e nem ficava maravilhado com expressões artísticas e avanços científicos. Não tinha dinheiro e quando tinha, não sabia controlá-lo.

Meu cérebro cria quando eu escuto um som do Mozart, do Chico Buarque. Não é que ele crie por inspiração, crie imitação de “Construção”. Ele cria porque inova, porque cada acorde me gera um arrepio-diferente, sensação-que-não-tem-nome, cutuco-delicado, carinho-arranhado. E sim, aqui houve criação! A arte cria até quando é absorvida. Por isso foi e sempre continuará sendo a maior forma de sedução de um ser humano para com outro, para com outros, de um ser humano para com todos, de todos os seres humanos para com um, mas principalmente, de um ser humano para consigo.

Nossa, que gênio hein, dá uma esporrada no monitor agora. Bate uma punheta com sete fotos 3x4 suas, espalhadas pela escrivaninha.

Que monólogo masturbativo.

E aí, o escritor tem controle no texto ou ele é autônomo?

O texto é inicialmente O escritor e depois ganha capacidade-significativa própria?

Própria ou dada por quem o lê?

E será que um texto tem capacidade significativa sem ninguém tê-lo lido?!

Puts, claro, os regimes totalitários, cara!

Aeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee!

...

Game Over.

- Pedrinho-amor, você tá bem?
- Só escrevendo um pouco, Raquel...
- Falando sozinho?
- Com o monitor.
- Ah...
- Só lexotan...
- Tô vendo.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

A paz que eu não quero seguir admitindo



(Ao som de “Minha Alma” na voz de Maria Rita)

Pode me dizer o que você quiser, cara. Pode me acusar do que você quiser, me apontar com o dedo na cara o defeito que mais te incomodar. Pode me arrebentar de porrada, pode me jogar pra fora de casa. Pode me encher de pipoco, me encher de macumba, de difamação, me caluniar, me enrabar, me cortar e perfurar inteiro até morrer de tanto sangrar.

Pode maldizer meu pai minha mãe minha família inteira, pode me deixar esquecido, me ignorar. Pode tirar tudo que eu tenho, ou tudo aquilo que um dia eu achei que possuía sem nunca ter me dado conta de que na vida a gente não tem nada, nem a nós mesmos quando a água bate na bunda. Só caos e descontrole do caos.

Pode cortar meu pau fora, pode cortar minhas duas mãos e meus dois pés, pode deformar minha cara com ácido sulfúrico. Pode me deixar cego, me deixar paralítico, sem uma orelha. Pode me arrancar o nariz, deixando só as cavidades negras apontando sempre em frente, sempre uma boa caverna para o bom inseto que entrar ali dentro e depositar quantos forem os ovos necessários pra que nasçam larvas suficientemente famintas e de número bastante pra comerem meu cérebro inteiro.

Pode me amputar a alma, que eu já não preciso mais dela.

Pode me dar uma bengala, me chamar de velho, apagar minha memória. Pode discursar com ar de cientista e negar tudo aquilo em que um dia eu acreditei. Pode queimar todas minhas roupas, minhas fotografias, meus documentos, minha casa, minha delicadeza, minha sensibilidade. Pode queimar tudo que estiver de alguma forma relacionado a mim. Pode, inclusive, queimar todas as pessoas que a mim se ligam ou são relacionadas, que no fundo no fundo, eu já não preciso mais delas.

Não que um dia eu tenha precisado e seja egoísta o suficiente pra soltar um comentário desses. fNa verdade, não preciso mais como nunca precisei, como constantemente deixei de precisar, como vim exercitando repetidamente a desnecessidade de me importar com elas.

Pode piorar, pode me tirar a água do banho, a comida da boca e os pêlos do corpo. Pode arrancar meus ideais, meus sonhos, minhas expectativas, minhas tentativas, meus erros e meus acertos, e tudo aquilo que talvez um dia tenha me feito bem. Só fé que não vai poder tirar, porque afinal, fé eu nunca tive.

Pode me deixar seco e esturricado ali no sol prum urubu vir e me comer naquele momento mais caótico da nossa vida, o momento da quase-existência, o momento que a gente está a um pé de ser e a um pé de nada, a um pé de todas as coisas coloridas e a um pé de tudo aquilo que não tem nome, porque não é; aquela linha tênue e nauseabunda entre um piscar de vida e um arregalar de morte.

Aproveita que vai me tirar tudo e leva junto esse sangue maldito que grudou nas minhas mãos. Eu já to fodido mesmo. Agora eu entendi porque dizem que o primeiro banho depois que você mata alguém parece o primeiro banho da sua vida. Eu acho que é a adrenalina, cara. Te endurece inteiro, cê fica parecendo uma borracha que inchou de algum líquido maldoso, depois ficou exposta tanto tempo ao calor e à secura que encolheu, encolheu, e começou a rachar todinha, todinha.

Sai, sangue de merda! Tsc... Esse banho é uma delícia, na cadeia não vai ter mais mamata de aguinha quente. Nossa, aquele babaca do padeiro ainda disse que eu precisava de paz no meu coração. Que paz é essa que eu preciso ter no meu coração, seu velho infeliz de bosta! Que tipo de paz é essa que me mandaram cultivar e conservar, como se eu fosse um capacho do sistema, uma mula que carrega um letreiro nas costas.

Eu não quero essa sua paz coletivizada, essa sua paz senso-comum, paz cheia de medo e de obediência, paz que virou paz porque foi incapaz de virar algo melhor. A minha paz é a tranqüilidade da minha alma em saber que o Rogério não existe mais. Essa sua paz que não é a minha paz eu não vou continuar seguindo, não vou compactuar com esse exercício arbitrário de poder discursivo, paz que é liberdade, consumo, concorrência, dinheiro, arma, guerra e podridão.

A minha paz é mais simples, a minha paz é luz num mundo negro de falseios. Eu não quero sua paz, eu quero a minha paz. E agora eu a tenho. Seu mundo, padeiro, seu mundo sustenta uma paz muito mais sangrenta que a minha. Seu mundo, seu sistema, seu complexo social, sua cultura, sua moral, suas leis e seu direito, seus achismos, sua economia, sua patifaria, sua psicologia frustrada, sua estética de celulites e coca-cola, sua filosofia de acaso, sua pinga no boteco, seu torresmo cheio de óleo, e mais todo o monte de jogos e truques sem os quais você e o resto não conseguem viver, não me trazem paz porra nenhuma!

É foda estudar 5 anos de ciência política, teoria do estado, constituição, genealogia da moral, história mundial, direitos humanos, conviver com aquele monte de molecada com síndrome de pequeno poder, depois enfrentar anos e mais reanos de cursinho para concursos, que ridículo, esses eu perdi a conta, trocar de método, reprovar na parte teste, reprovar depois na parte aberta, depois na entrevista, putaquepariu-passei!, depois de prestar 7 vezes vou finalmente abocanhar essa vaga de juiz.

É foda encarar o mundo de frente, tentar fazer as coisas melhorarem, lutar pra si, pelos outros e até por meia dúzia de zé-mané que eu discutiria se realmente mereceram a minha luta. É foda SENTENCIAR, padeiro de merda. Cada sentença é duas noites sem dormir, trinta segundos a menos de vida, uma pancada mais dolorida no coração, uma gota a mais de stress e um tendão a mais inflamando, uma infelicidade a mais, uma dúvida a mais, uma perda de identidade a mais.

Tinha dia que eu dava tanta sentença que chegava em casa e ficava me olhando no espelho, pasmado, chocado, constipado, prostrado, pensando como eu podia tomar decisões acerca do mundo que me rodeava se, em tanto tempo de vida, nem mesmo tinha conseguido me conhecer enquanto eu-mesmo. Você não sabe o que é ter lepra no espírito. Não sabe o que é ver os sentimentos e as expectativas definharem gradativamente, dia após dia, de pouquinho em pouquinho, e a única arma sobrando pra usar contra essa desgraça ser seu próprio sorriso amarelado e sem graça aparecer na frente do espelho.

É foda estudar a lei, achar que entende a lei, conseguir interpretá-la e aplicá-la de um jeito mais ameno, mais paciente, calmo, justo, sem, é claro, perda de combatividade. Eu já fui você um dia, eu já acreditei no sistema, no meu ofício, num direito como instrumento-de-transformação-social, nossa!, viva ao Gramsci! Mas agora na minha cabeça, a paz que vem desse sistema não é mais uma paz que quero conservar pra tentar ser feliz, essa paz eu não vou seguir admitindo.

Coitado do Gramsci, quem tava certo era o Falcão do Rappa.

Sabe o que aconteceu, padeiro? Eu tive a minha chance, que todo homem, eu tenho certeza, existindo deus ou não, ganha um dia. Eu conheci uma professora de literatura que se chamava Beatriz, que se tornou um dos seres humanos mais interessantes que já tocaram o meu conhecimento, a mulher mais bela com a qual cheguei a me deitar, a mãe mais inovadora que eu poderia ter escolhido.

E eu, Seu Padeiro, que era até então um cara desacreditado, quase se rendendo perante esse seu mundo que um dia eu cheguei a acreditar e inclusive um mundo pelo qual eu lutei e lutei até me cansar, recebi o encanto da minha vida. Nasceu a Clarice. Criei a Clarice até ela fazer 15 anos, exatamente, porque no dia seguinte do seu aniversário – tão bonito, que nos deu tanto trampo conseguir montar e pagar, mas que valeu cada moedinha e cada instante gasto quando vi o brilho dos olhos dela, – ela foi achada morta.

Porque alguma pessoa, igual a mim e a você, trabalhadores, vítimas de si mesmos e de sua história, vítimas de um sistema econômico-político torpe e selvagem, agressivo, guerra de todos contra todos, vítimas das circunstâncias, da eventual descarga hormonal que rolar, uma pessoa com dramas e sortes, idas e vindas, com a sua parcela de construção do mundo, estuprou a Clarice.

Fiquei mal até descobrir o nome, porque quando descobri não parava de emitir incessantemente na minha cabeça aquele som, som que representava a sua pessoa, de maneira a canalizar todo o meu ódio para poucos fonemas, poucos contornos e pouca imaginação.

Tudo no mundo faz sentido até você se foder, padeiro.

Quando você se fode inteiro, a resposta-reflexo que o mundo recebe é mais um desajustado que vai aparecer no noticiário.

Mas sabe que só agora eu entendi? Depois de tantas sentenças, de tirar tanta pessoa podre da cadeia, de colocar tanto inocente lá dentro, de chorar tanto, de estudar tanto, de viver tanto minha profissão que era de certa forma a fé que eu nunca tive, depois de tantas visitas à cadeia, de ter sido assaltado tantas vezes, de ter conversado aquele dia com o Pedro, que desistiu de me assaltar e me pediu desculpas, depois de tantos sexos mal-feitos com a Beatriz por causa do stress tenebroso que rolava por cada centímetro do meu eu-consciente e cada parcela das minhas entranhas, eu entendi, Seu Padeiro.

Você não se importa mais com as circunstâncias nem conseqüências de um ato brutalmente animal porque entende que toda essa construção sistemática em forma de sociedade é uma máscara para nosso instinto animalesco, para nossa sorte grotesca, para o caos que nos é natural e inerente, para a loucura pura e plena de sermos o bicho mais aniquilador que existe.

Um dia eu acreditei e lutei por tudo aquilo que faz sentido. Pra mim também fazia.

É fácil acreditar e lutar, até o momento em que perdemos o controle sobre nós mesmos.

Agora eu entendo. Se arrepender depois de fazer uma grande merda É possível. A gente nunca vai controlar, seja lá qual ferramenta resolvamos usar, essa animalidade toda reprimida que está dentro de nós, perpetuada e carregada como um fardo, como a negação de uma podridão que nos é toda nossa e natural, sem a aceitação necessária para que sofrêssemos menos do que sofremos hoje, condição débil a do ser humano.

E depois de tudo isso, sem me conhecer nem uma centelha, vem querer me falar de paz? Ah, vai se ferrar! Paz é isso, paz é eu aceitar o prazer que nasce a partir da vingança, é deixar essa coisa maravilhosa – que seu sistema-imposto-pelo-qual-já-lutei-tenta-destruir – inundar todo o meu corpo e a minha mente.

A diferença é que não me arrependo. Me arrependesse e não estaria em paz.

Mas não se preocupe, padeiro, é insegurança jurídica-política-social demais o homicídio enquanto realidade. Não vou viver à margem do seu sistema. Não tenho mais idade nem pique pra isso. Vou até a delegacia depois do banho, fique tranqüilo.

Só não me venha falar de paz antes do primeiro banho da sua vida.