segunda-feira, 25 de junho de 2012

Creme de alface




Creme de alface - Caio Fernando Abreu


Enfim, enumerou na esquina, Raul se enforcara no banheiro, cinco anos exatos amanhã, e este maldito velho com passinho de tartaruga bem na minha frente, eu tenho pressa, quero gritar que tenho muita pressa, Lucinda quebrou as duas pernas atropelada por um corcel azul três dias depois de Martinha confessar que estava grávida de três meses, e não quer casar, a putinha, desculpe, mas o senhor não quer deixar eu passar? tenho pressa, meu senhor, o telegrama, a putinha, crispou as mãos de unhas vermelhas pintadas na alça da bolsa, pivetes imundos, tinham que matar todos, venha urgente, ir como com aquele desconto de trinta por cento no salário e todos os crediários, papai muito mal pt., apoiou-se, não, não se apoiou, não havia onde se apoiar, apenas pensou no apoio de alguma coisa sólida que não estava ali, havia só os corpos, centenas deles indo e vindo pela avenida, ela roçando contra as carnes suadas, sujas, as gosmas nas lentes dos óculos, como se não bastasse a tia Luiza agora que nem criancinha, mijando nas calças, brincando de boneca, dá licença, minha senhora, tenho seis crediários para pagar ainda hoje sem falta, aqueles jornais cheios de horrores, aqueles negrinhos gritando loterias, porcarias, aquele barulho das britadeiras furando o concreto, naquele dia, a fumaça negra dos ônibus e eu de blusa branca, a idiota, introduzindo devagar a chave na porta do apartamento de Arthur, buquê de crisântemos na outra mão, uma hora tão inesperada, e tão inesperados os crisântemos, a senhora não vai andar mesmo?...

O sinal já abriu faz horas, só uma cretina seria capaz de trazer duas crianças ao centro da cidade a esta hora, ele jamais poderia imaginar, o ruído leve da chave abrindo a porta, animal, por que não olha onde pisa? atravessar a sala na ponta dos pés, abrir a porta do quarto e de repente a bunda nua de Arthur subindo e descendo sobre o par de coxas escancaradas da empregadinha, meu deus, mulatinha ordinária, se pelo menos fosse uma profissional, eu podia entender, vomitou no elevador sobre os crisântemos amarelos, não, não sei onde é Casa Oriente, pergunte para o guarda, agora ele vai morrer, será castigo? câncer no baço, nunca mais seu cheiro de cavalo limpo, nunca mais o peso e os pêlos de seu peito sobre meus seios quase murchos, a putinha, a mulatinha vadia, por cima este calor absurdo em pleno inverno, o eixo da Terra, dizem, a estufa, o ozônio, tudo um horror, em dez anos estaremos todos surdos, cegos, envenenados, as lãs do começo do dia vertendo suores entre as pernas, como é que uma gorda dessas pode sair à rua ao lado de outra gorda ainda mais larga? fazem de tudo para atravancar o movimento alheio, se pelo menos tivessem avisado a gente, você não vai me vencer, ouviu bem sua vida de merda? eu vou ganhar de você no braço na raça e quem se meter no meu caminho eu mato, sem falar no Marquinhos o tempo todo enfiando aquelas coisas nas veias, roubando coisas pra comprar a droga, e sou eu sozinha quem carrega todo esse peso nas costas, isso ninguém percebe, ninguém valoriza, não, eu não nasci para viver neste tempo, sensível demais, no colégio já diziam, certo talento pra dança, eu tinha, e a Lia Augusta agora querendo ser modelo, fortunas naquelas fotos, não tenho nada com isso mas falei assim pra Iolanda, bem na cara dela: é tudo puta, o senhor por favor poderia fazer o obséquio de tirar o cotovelo da minha barriga? porque precisa ser super humana, vocês estão me entendendo, seus porcos, boiada, manada, desviou com nojo do velho, a pústula exposta, vai pedir dinheiro na Secretaria da Fazenda, já cansei de dizer que mendigo é problema social, não pessoal, a cadela da Rosemari bebendo cada vez mais, meio litro de uísque até o meio dia, depressão, ela diz, no meu tempo isso tinha outro nome, pouca vergonha era como se chamava, este fio fino de arame atravessado na minha testa, de têmpora a têmpora, vibrando sem parar, é preciso sim ser biônica atômica supersônica eletrônica, vocês pensam que eu sou de ferro?

Quando ia começar a rir alto parada na esquina, viu a bilheteria do cinema, a franja de Jane Fonda, imaginou a temperatura amena, o escuro macio na medida exata entre o seco e o úmido e pelo menos, decidiu olhando o relógio, ainda dá tempo, os crediários podem esperar, pelo menos duas horas santas limpas boas de uma outra vida que não a minha, a tua, a dela, a nossa, uma vida em que tudo termina bem.
Foi então que a menina segurou seu braço pedindo um troquinho pelo amor de deus pro meu irmãozinho que tá no hospital desenganado, pra minha mãezinha que tá na cama entrevada, tia. Ela disse não tenho, crispando as unhas vermelhas na alça da bolsa enquanto puxava a entrada do outro lado do vidro da bilheteria. A menina insistia só um troquinho pro meu irmãozinho e pra minha mãezinha, moça bonita, e tão perfumada. Ela repetiu não tenho e de novo não tenho, mas a menina olhava o troco pedindo cinqüenta centavinhos, uma tia tão bonita, eu tô com tanta fome e o meu irmãozinho desenganado no hospital e a minha mãezinha entrevada em casa, eu que cuido. Ela gritou não tenho porra, e foi tentando andar em direção à porta do cinema, não me enche o saco, caralho, em volta os outros olhavam, e não me chama de tia, mas a menina não largava seu braço. Assim:

Assim: ela segurando com força a alça da bolsa fechada enquanto tentava andar, e sem querer arrastando a menina que não parava de pedir. Ela sacudiu com força o braço como quem quer se livrar de um bicho, uma coisa suja grudada, enleada, e foi então que a menina cravou fundo as unhas no seu braço e gritou bem alto, todo mundo ouvindo apesar do barulho dos carros, dos ônibus, dos camelôs, das britadeiras, a menina gritou: sua puta sua vaca sua rica fudida lazarenta vai morrer toda podre.

Tão exato, subitamente. Inesperado, perfeito. Mais contração que gesto. Mais reflexo que movimento. Como um passo de dança ensaiado, repetido, estudado. E executado agora, em plenitude.
Ela ergueu a perna direita e, com o joelho, pelo estômago, jogou a menina contra a parede. A menina escorregou gritando cadela filha da puta rica nojenta vai morrer toda podre. Mas tantos carros passando e tanto barulho mas tanto, justificaria depois, à noite, na mesa do jantar, bem natural, servindo a sopa ainda não decidira se de ervilhas ou de aspargos, sabem, hoje me aconteceu uma coisa que, tudo vibrando tanto, tudo girando tanto, tudo se movendo tanto, esse arame atravessado na minha testa, uma coroa de espinhos. Certeira, com a ponta fina da bota acertou várias vezes as pernas da menina caída. Alonga e contrai e bate e volta e alonga e contrai e bate e volta: exatamente como numa dança, certo talento, todos diziam.
Mas não esperou pelo sangue. Afastou as pessoas em volta com os cotovelos, só o tempo de comprar um pacote de pipocas, para afundar naquele escuro exato, nem úmido nem seco, em tempo ainda de ver no espelho da sala de espera uma cara de mulher quase moça, cabelos empastados de suor, roxas olheiras fundas e mãos de unhas vermelhas pintadas crispadas com força na alça da bolsa.

Quase uma assassina, não pensou, meu deus, quase uma criminosa, espalhando-se sem horror na poltrona no momento em que as luzes começavam a diminuir. Apertou a bolsa no colo, puxou com as unhas, para baixo, a gola alta arranhando o pescoço, cheiro meu de bicho eu brotando do meio dos meus seios quase murchos, seis crediários e esse dinheiro por um filme que nem sei direito, Arthur deve estar morrendo mais um pouco agora, os cabelos finos e frágeis da quimioterapia. Ah, se enforcar feito Raul, se deixar atropelar igual Lucinda, regredir como tia Luiza, emprenhar que nem Martinha, trair como Arthur, se drogar igual Marquinhos, beber feito Rosemari, virar puta que nem Lia Augusta: biônica atômica supersônica eletrônica catatônica o dia inteiro no canto do pátio, enrolando no dedo uma fio de cabelo ensebado, os outros mijando e cagando em cima dela, a pia cheia de louça de três meses, lesmas, musgos, visgos, deixar apodrecer a vida como a vida deixou apodrecer o coração, não, não nasci para este mundo, a bunda nua subindo e descendo sobre um par de coxas alheias, ainda por cima mulatas, nunca mais e eu de blusa branca e com crisântemos amarelos, puta fudida, cadela escrota, ai que vou morrer toda podre por dentro, por fora.

O bico da bota ardia querendo mais, cinco anos no fundo de uma cama, e de repente o contato do joelho quente de uma perna estendendo-se da poltrona ao lado, tentou prestar atenção nas imagens, a silhueta das cabeças, meu deus, que boca tem a Jane Fonda, pensou em mudar de lugar, mas tão cansada, um oceano de paz, e antes de decidir arriscou um olho para o nariz poderoso do macho ao lado desenhado no escuro a seu lado, e suspirou mole, por que não, ninguém vai saber, cadela gorda no cio afundada cada vez mais na poltrona, a boca cheia de pipocas.

Pouco antes de abrir as pernas deixando os dedos dele subirem pelas coxas, bem devagar, para não assustá-lo, ainda esfregou as palmas secas das mãos uma contra a outra, tão ásperas, o espelho da sala de espera, uma lixa, que pele meu deus tem a Jane Fonda, o lixo das ruas e o roxo das olheiras tão fundas, mas tão fundas pensou acariciando o rosto enquanto um dedo dele entrava mais fundo, tão fundas que resolveu, eu mereço, danem-se os crediários, custe o que custar saindo daqui vou comprar imediatamente um bom creme de alface.

domingo, 24 de junho de 2012

Autocontrole


ANTONIO PRATA

Autocontrole

Que época bunda-mole esta nossa! Elegemos como principal virtude justo a mais medíocre


FAZ MAIS ou menos um mês, ouvi uma mulher dizer que nunca iria a uma nutricionista gorda. Semanas depois, um amigo demonstrou preocupação ao descobrir que seu psicanalista fumava. Segundo eles, ao que parece, não pode cuidar da dieta ou da ansiedade alheia quem não controla os próprios impulsos.
Ah, que época bunda-mole a nossa! Elegemos como principal virtude justo a mais medíocre: o autocontrole. Foi-se o tempo em que o herói era aquele capaz de romper as amarras sociais, morais, históricas. De enfrentar o mundo em nome de um ideal ou de dar um piparote nas sentinelas do superego em busca de seu eu profundo.

O Super-Homem atual é o que, avaro com os prazeres, melhor consegue inserir-se nos escaninhos disponíveis do mundo. É um profissional bem-sucedido e com barriga de tanquinho. Seus feitos não serão medidos pelas marcas deixadas na história, mas pelo extrato da conta bancária e pela taxa de colesterol.
Não falo de fora. Sou filho da época, também tento enquadrar-me neste anódino "zeitgeist", de sonhos tão mirrados como as cinturas de nossas divas: sou funcionário esforçado, corro na esteira, acredito nos poderes milagrosos da quinua. Quando ponho a cabeça no travesseiro, contudo, envergonho-me e lamento a grandeza perdida.

Outrora buscávamos a nascente do Nilo, a verdade última das coisas, nos metíamos no mato sem cachorro, em mares nunca dantes navegados, nos entregávamos a amores e substâncias proibidas atrás de paraísos naturais ou artificiais. Agora, aqui estamos nós, usando 30 séculos de conhecimento acumulado para vender mais pasta de dentes, mais jornais, empenhados em descobrir como fazer dez arruelas ao custo de nove e receber uma promoção; aqui estamos nós, reinando sobre a natureza, mas comendo barrinhas de cereais.

Onde foi que nós erramos? Em que beco escuro do século 20 um Mefisto chinfrim sussurrou em nossos ouvidos que alcançaríamos a vida eterna caso abríssemos mão de nossos corações em nome do "sistema cardiovascular"? Que bizarra inversão foi essa que nos fez acreditar que a função das comidas é facilitar o trabalho do sistema digestivo, e não que a função do sistema digestivo é lidar com nossas comidas? Desculpem por ser chulo, caro leitor, mas eis a ambição de nossa triste humanidade: fazer um cocô durinho.

Veja, acho bom que haja campanhas contra o cigarro. Que o exercício físico venha se tornando um hábito mais e mais comum. A vida é curta e preciosa demais para que a atravessemos com pigarro e sem fôlego. Mas é curta e preciosa demais também para ser gasta nesta liberdade (auto) vigiada, em que o prazer e a poesia são drenados a cada dia pelos ralos da eficiência.

Não creio em nada para além do último suspiro, mas ficção por ficção, sou mais Dionísio, São Francisco e Ogum do que esse culto desvairado pela bicicleta ergométrica, o Excel e a fenilalanina.

Bichos burros! Indo do berço ao túmulo agarrados às certezas mais tacanhas e permitindo-nos o mínimo de prazer, o grande legado de nossa época será belíssimos, saudabilíssimos cadáveres -injustiça, aliás, com as minhocas, que não estão preocupadas com o colesterol nem com suas anelídeas silhuetas.

antonioprata.folha@uol.com.br

@antonioprata

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/49815-autocontrole.shtml

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Meu primeiro amor


"A carruagem do passado não nos leva longe"
Máximo Gorki


Meu primeiro amor


Estou num velório.
E tenho apenas 8 anos.
Um ser negro e peludo está numa caixa.
Não consigo aceitar.

Não consigo aceitar o fato de que se morre por tristeza.
Não aceito o fato de que eu tenha que sofrer a mesma tristeza agora.

Ele morreu por tristeza.
Morreu porque seu ente mais querido o deixou.
Agora, sinto um gosto estranho na boca
e na minha barriga uma dor inquieta
que me faz desejar morrer também.

Eu fiz um velório.
Este velório que faço perdura há 15 anos.
Velei meu primeiro amor original, e seu nome era Gorki.
O cachorro que mais me amou, a quem mais amei.

Como não sou diferente de ninguém
Não aceitei sua perda.
Assim como minha mãe não pode aceitar a perda de sua própria mãe.
Assim como meu pai não pode aceitar a perda de sua própria infância.

Tornei-me humano na falta.
Foi na ausência deste amor que tive que aprender a amar mais.

Este velório não tem velas.
Não tem pessoas nem enterros.
É um velório de alma e emoção.
De lágrimas que se esparramam por anos, com voltas e retornos infindáveis.

Talvez eu não queira velar outros que amo
se minha própria vida continua um velório que não terminou
- uma falta impossível de ser preenchida.

Mas não vou obturar meu desejo.
O Gorki não pode voltar
nem minha infância
nem meus pais voltarão quando forem.

Nenhum daqueles que amamos perdura.
Definhamos juntos no amor que depositamos neles
e eles se vão.

A vida adquire seu sentido na perda
e é neste velório constante que me sinto eternamente perdido.
Eternamente inaugurada a nova possibilidade
de amar mais, de novo, e outra vez,
depositando esta doçura emocional
nalgum ser da nossa vez.

Gorki, eu descobri minha falta inaugural. É você.

sábado, 16 de junho de 2012

Demorei...




Demorei pra perceber muitas coisas na vida. Demorei a curtir uma boa música. Mas quando descobri o rock, não teve volta. Depois veio o samba, o jazz – percebi que a vida sem música era barulhenta. Ao contrário, com a música conseguimos sentir o silêncio dos nossos sentidos. Demorei pra perceber como a mudez, num ambiente de música agradável, desnuda as sensações de felicidade que tentamos ocultar por timidez. As músicas garantem os sorrisos, a atração dos corpos, os passos de dança, o suor misturado e a nova tentativa de recriar um sentido para a vida.

Demorei pra perceber que a beleza está em lugares secretos e misteriosos. Lugares por vezes indescritíveis. O belo, a potência que ele nos estimula e revela, o encanto desejante: o belo nos dá a exata noção de nossa falta perante o mundo. O belo desenha o vazio do humano perante o mundo que escapa, cotidianamente, de suas mãos. É no belo que o ser humano esvaziado aprende a desejar. É no belo que o ser humano se percebe, ao mesmo tempo, fraco e fortalecido, egoísta e generoso. Há algo de singularmente belo no simples. A simplicidade possui um sabor que lhe segreda a potência num mistério inenarrável.

Demorei pra perceber a importância da cumplicidade entre os amigos. Demorei pra entender que a amizade não é interessante enquanto uma corporação instituída e sempre instituível. A amizade guarda sua força instituinte nos movimentos espontâneos das subjetividades que se encontram. A força da amizade é sua capacidade espontânea de aproximar os corpos. A amizade é uma biofísica, questão fundamental para que se repensem as teorias políticas todas. Já que é mania da ciência bem comportada anular o afeto que marca a superfície de seus objetos.

Demorei pra perceber que arte não é uma técnica, mas uma convulsão. Só concebo o artista como um revolucionário, o que me implica a conceber o revolucionário apenas como um artista. E há artistas suficientes para alimentar os desígnios do bem ou do mal, isto é, qualquer poder faz arte. Vejo diante de mim Banksy, grafiteiro inglês, quando decidiu desenhar a cor da vida nos muros de Israel. Naquele dia, Banksy realizou um projeto: elevou a importância de sua arte à importância mesma de sua vida. Desafiou sua existência mundana e a presença da morte naquele território belígero, quando os judeus assaltaram a cultura dos palestinos. Em meio a tantos homens armados com metralhadoras, treinados para atirar em todo e qualquer detalhe que atente contra a ordem vigilante, Banksy desafia a sensibilidade do mundo: coloca uma escada gigantesca e confere brilho ao monocratismo que o ódio e a guerra impõem. Banksy se tornou um nome revolucionário justamente pelo seu anonimato. Sua atuação nos faz lembrar que nosso cotidiano está repleto de artistas revolucionários (pleonasmo!), ocultados pelas relações de dominação da sensibilidade, controle social dos corpos e gestão ideológica dos desejos. A verdade é que a política serve para anular a arte.

Demorei pra entender a importância do mar. Das árvores. Dos animais, sobretudo os pequeninos. Demorei pra perceber que tudo se trata de perspectiva. E aprendi a olhar com olhos novos, porque livres. Ver com olhar livre. Ser humano na liberdade concreta da terra, da fruta, do cultivo ecológico, da economia lidibinal dos corpos, da felicidade do convívio respeitoso com a mãe natural. A importância do gênero feminino, a importância do ser mais fraco, a necessidade de proteção e guarida ecológica àqueles ameaçados de aniquilação, a doçura emocional que as práticas conscientes geram no mundo. Cada cor de cada flor é um movimento heurístico. O sentido do mundo ou da vida está para ser lançado a cada novo golpe das incertezas históricas. Num pequeno gesto de amor reside a violência mais brutal. O atentado mais vigoroso contra as estruturas é subverter os seus pressupostos. A maior agressão contra a insensibilidade cotidiana é o abraço compartilhado. É por isso que o artista é um revolucionário: a arte violenta de Gandhi foi demonstrar que a brutalidade pode ser subvertida e deteriorada pelo gesto de pacificação. Gandhi foi muito mais violento que Hitler, na melhor acepção possível: agrediu a torpeza do sistema com a atitude corajosa do amor.

Demorei muito para entender que amar significa antes de tudo ser forte e, na sequência, estar disposto a testar os próprios limites. O amor recoloca na agenda existencial a pauta do vazio, da falta, do sentimento intenso de incompletude. A descoberta do amor é a descoberta de que não somos seres autossuficientes. Amar é esquecer por um momento que se existe e se morre e que nesta ilação não reside sentido que o valha. O amor desconecta para reconectar em outra instância de comunicação semântica. Amar é se deixar transfigurar. O amor é a trama que põe os corpos dos seres em mutação. Com um detalhe: não há retornos, nem progressos, apenas a heurística do rompimento. Amar é perceber que o outro rompe o que somos, rompe nossos obstáculos, rompe nossa cadeia desejante, transgridem nossos projetos sintomaticamente bem acabados, fazendo despertar o artista ou revolucionário que todos e cada um de nós estamos habilitados a ser.

Demorei pra entender que estar consciente das minhas faltas e das faltas do povo é a conscientização política por excelência, que só assim permite uma existência engajada na luta contra a dominação dos seres humanos. Se há por aí quem diga que os próprios sujeitos são criação interessada, então a luta deve ser pela libertação da mundanidade orgânica dos povos, seja lá qual subjetividade ou sujeito lhes esteja incutido. E não importando a boa ou má-fé do ser dominado, lembrar sempre, e em última instância, que todos merecem ser constantemente libertados de todas as opressões. Mais que isso: o vocabulário e o calendário da dominação estão longe de perder atualidade.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Quando fumo





Quando fumo

            Acendo um cigarro. Não sou eu, porque não fumo. Se acendi o cigarro, falo de outro. Este outro acende um cigarro e admira uma imundície qualquer jogada no chão. Costume universal: ser sujo e sujar a tudo, independentemente da ideologia. Pura porcaria. Devo estar remoendo um passado que está morto. Alguma parte dele que eu fiz questão de assassinar. Na dinâmica do tempo, não somos vítimas nem réus. Somos sempre parte atuante: a omissão torna-se uma ação tola.

            Nunca me omito. Já paguei caro por isso. Mas prefiro confabular linguagem para cara parte do mundo que me falta. Faltando, crio a todas. Isso faz alguns rirem. A outras pessoas, causa dores. No fim, todos temos a indiferença como a maior arma. Lembro sempre de amores passados que me frustraram. Um sentimento reativo de vingança, uma vontade louca de enfiar a mão na cara daquele que elegemos como culpado em holograma mental. Nossa imaginação é capaz disso: montar personagens virtuais. Que não existem em lugar algum fora de nossas cabeças. Este céu, acima da minha cabeça, talvez não exista. Olho-o com a mesma indiferença com que sou contemplado por alguém que também acendeu seu cigarro.

            O cigarro serve para isto: celebrarmos nossa indiferença quanto à torpeza do mundo.

            Confesso que odeio cigarro, mas preciso dele pra viver. O cheiro do cigarro é o pior. Não fumo dentro de casa: se fumasse, não seria eu. Se fumo cigarro já não sou, se fumo dentro de minha própria sala, duplamente deixo de ser. Mas o que importa para a ciência e a para a política, no fim, é isto mesmo: captar o que não é. Aquele, aquela, quem ou qual ou quanto não é, deixa de ser. O mendigo, o otário, a louca, o fodido e o desempregado: algo neles não é para que algo fora deles conquiste o magnânimo direito de ser. A realidade é que todos nós somos coisa nenhuma: a diferença é entre quem sabe disso e quem o nega. Quem o nega tem a louca gana de expandir o eu. A expansão do eu é a pior das faces da pós-modernidade: demonstra que o projeto moderno ainda tem vigência. Não fosse o cigarro, e o tempo que ele disfarçadamente me confere na idiotice cotidiana, não poderia fazer minhas reflexões. Refletir é uma bosta: sou feliz quando consigo não pensar.

            Pensar serve para isto: modelos mentais criados para celebrarmos juntos nossa infelicidade da vida. Compartilhar algo, e não ter nada melhor que compartilhar que um mesmo inconformismo impotente para com a vida. E então acendo outro cigarro. Vejo Flavia. E já não sei se é ela pessoalmente ou se é uma projeção mental minha. Aliás, mesmo quando Flavia está de verdade em minha presença, concretamente, sinto que a vejo inevitavelmente enquanto minha projeção. Há algo de saboroso nisso tudo: o sabor vai do doce ao amargor. Flavia está ali mesmo, agora é sério. Ela também acendeu um cigarro. Cara, que delícia! Fico medindo cada milímetro de um lábio cujo sabor me escapa. Nem sei, há uma graça peculiar em não saber nada, estar perdido numa emoção original e radical, que vem da origem e se afunda na raiz. A raiz é a mão divina da planta – todos temos de nos agarrar a algo. Nossas mãos expressam esta emoção sem precedente.

            Flavia pousa as mãos no parapeito. Suas mãos tomam o muro como uma raiz, na mesma graça. Mas sei que ela – Flavia – e ele – o muro – não querem estabelecer relação tão íntima. Ela olha e me acena, seu cigarro queima levemente, e de longe só posso ver sua fumaça. Sua brasa fica dentro de mim, do meu peito e da minha imaginação furtiva. Lembro de um desgosto qualquer, de tanto filho da puta que eu conheci na vida. Lembro que sou também um filho da puta pra muita gente. E trago bem fundo um cigarro indiferente. Afinal, eu não fumo. Devo estar apaixonado. Porque tudo para – o  tempo, o espaço e o nada – e conservo em minha lembrança, em slow motion, os lábios de Flavia se abrirem, de novo e novamente, para a próxima tragada. No interstício de um intervalo, me congelo e me resvalo, e sinto em mim o lábio superior de Flavia grudando pontualmente no lábio inferior, e atrasando alguns milésimos a abertura completa.

            Abrir a boca serve pra isso mesmo: celebrar para o mundo a graça e o torpor que andam unidos dentro de nossos corpos.

            Flavia fica me olhando. Às vezes ficamos assim simulando um ao outro personagens que encenam uma peça teatral de indiferença. Personagens com seus cigarros, sua autonomia reciprocamente notada ou notável. Olhamo-nos de canto, e num golpe sensual completamente improvisado, quedamos numa postura, numa posição corpórea assim ou assada. E meu corpo inflama, sensualizado pela perturbação que os gestos de outro ser humano causam em meu sistema inteiro. Num momento, toda a náusea e o nojo do existir no mundo da vida suspende-se numa nuvem. De fumaça, talvez. Estamos ambos fumando, eu e Flavia – embora eu não fume. A vida desintegra-se enquanto semântica, perdendo todos seus sentidos (fabricados) novamente. O significado, instável em sua estabilidade disfarçada, é agredido pelo poder totalitário do referente, da última conotação, da última metáfora bem feita, da última ironia, do último neologismo talvez – eles nos reinauguram para na sequência nos aniquilarem e novamente reinaugurar.    

            Tudo muda de sentido. E o efeito dos sentidos, quando perenizam em significado, conceito duro, engessado, é devastador. Tudo que dizemos não é nosso. Não há propriedade intelectual sobre nada: dita, a palavra é autônoma e desenvolve-se como quer – caoticamente. Meu corpo vira um caos. Reflito tudo e esqueço que meu boneco, esta matéria orgânica acumulada num espaço-tempo específico, precisa reagir ao mundo. Precisa movimentar-se, encenar-se, produzir-se. Reflito tudo, fico parado, fora de mim, esqueço onde estou e, num relâmpago, Flavia já vem em minha direção. As personagens que fumam se foram. Meu cigarro acabou e nem notei. Acabou também a indiferença. A minha e a dela. A encenada e a factual. É um giro linguístico no mundo emocional. Alguma notícia de jornal que não será lida.

            Abrimos sorrisos imensos um ao outro. E eu penso como sou idiota em gastar minha energia libidinal com gente tola e intransigente. Como sou estupidamente metafísico em deixar passar os belos momentos simples da beleza de um lugar ameno e bucólico. E me entrego a um senso moral liberto de mágoas e preparado para desejar o novo. Assim me pertenço. É no sorriso que compartilho que me descubro. O outro contorna o sentido do meu ser nos pequenos gestos. Escuto a voz de Flavia, e tudo vira um grande redemoinho. Imagino, num lapso, um homem numa crônica especial. É um homem que, desacreditado, sai caminhando. E que se decide por caminhar até esquecer tudo aquilo que não tem o menor interesse. Continuar caminhando e insistindo no esquecimento de nossos documentos, de nossas vitórias, de nossas mágoas, de nossas angústias, de todos os lugares lindos e horríveis em que estivemos, das falhas, da autopenitência moral, da vontade de vomitar que existir causa.

            Este homem para a caminhada. Não sabe onde está. Perdeu-se. Não sabe voltar. Toca a campainha, atende uma vizinha querida. Mas ele não sabe o que pedir, não lembra nenhum número de telefone, nenhum endereço e nenhum nome. Desconcertado, pensa em pedir água, mas não tem sede. Não está morto, de fato. Mas algo pereceu e algo ascendeu. Ele está aberto ao novo, livre porque não cristalizou nenhuma emoção e nenhum pensamento. Quero ser como esse homem e não me permitir perenizar em conceitos estanques, títulos acadêmicos, feitos financeiros, malandragens faceiras, besteiras e mitos, brincadeiras imbecis e palavrório abestalhado. Tudo volta, como num ralo, mas sem o cheiro do ralo.

            - O locão, abre os olhos!

            E como quem volta de um sonho longínquo, retorno.

terça-feira, 5 de junho de 2012

A trilogia da erotização









Desobede-sendo


Não quero transferir tudo pras palavras.
Teu corpo e todo o desejo que sinto dele
Não podem ser traduzidos

A linguagem não é o que tenho de contato íntimo com o mundo
A linguagem é tudo aquilo do mundo que me falta

Faço linguagem com vazios que a vida me traga
Nas palavras, recrio as coisas belas que não possuo

Não quero te decodificar mulher
Minha poesia só quer te provar
O tipo de homem
que tua feminilidade me provoca
Provocado, me torno
Me torno algo que nem sabia ser
Uma parte minha que desconhecia

Não que eu queira uma ideia perfeita de você
Não quero você demais, nem de menos
Nem princesa, nem vadia, nem de canto
Só quero você em termos
Em pequenas parcelas doces

Quero seus sorrisos que não cabem nas minhas ideias
Quero a emoção de não saber nunca o que te dizer
Quando meu corpo reclama explicações

Mas as palavras não podem dizer
O que só os toques sabem comprovar
Nenhuma experiência é dedutível
A um conjunto organizado de sentidos
Nenhuma emoção (im)perceptível
Pode aproximar nossas libidos

Há algo de erótico e sensual
Impossível de ser descrito
Talvez seja meu ser transcendental
Que quer te devorar como num rito
Posso declarar-me ao final
Mas se disser que é só físico, minto
Quero algo teu que não tem nome
A este algo, nada parece igual






Buscando



Busco com meus olhos
Com meus dedos
Com minhas palavras

Busco com meus discursos
Com minhas trajetórias
Com minhas promessas

Busco com meu corpo inteiro
Com meu jeito faceiro
Com a sofisticação que me cabe

Busco com um palpite
Com uma história traumática
Com uma comédia engraçada

Busco com algum pequeno gesto
Busco com alguma atitude modesta
Busco você pelas partes
Busco você no todo
Busco você nas festas
E nas frestas, nas brechas do engodo

Busco com uma música deliciosa
Com uma passagem de livro recortada
Com uma figura pintada ou imaginada

Busco com a ponta do meu lápis
Com o molhado das minhas lágrimas
Com o sabor da minha saliva

Busco com amor ou ironia
Com fervor e hipocrisia
Como um desertor da ilha

Busco como se fosse única
Com o erotismo do nunca
Como circunstância muda

Eu vou te buscar na rua
Na muralha sentimental da China
Num samba do morro ou da Lapa
Numa festa de ribalta

Busco você num compasso
Com um passo de dança
Busco você e faço estardalhaço
Pirraceando igual criança

Busco você e se encontrar
Se te tocar
Com meus olhos, meus dedos e minhas palavras
Olha, eu sei lá
Mas vou continuar a buscar
Algo seu que está muito além de lá







Nós desatados


Moça bonita, menina guria,
Vamos ficar entre os jogos
Entre os olhares convictos
Entre a sorte dos toques

Vamos simular os mesmos caminhos
Só pra nos encontrarmos
Pelas beiradas, pelos cantos
Vamos confessar segredos pequenos
Entre afagos e encantos
Acalantos em praças
Instantes amenos

De novo nossos olhares
Agora lascivos, desejos na pele
Vamos nos conhecer em detalhes
Simular controvérsias estanques
Entre seduções de corredores
E trombadas de elevador

Serão tantos jantares, e cafés
E caminhadas pela praia
E contemplações de borboletas
E outros animaizinhos estranhos e lindos
Vai ser um comecinho fugaz
Não vai dar tempo mas vai vir de trás
E de costas a gente vai ser
Um do lado do outro
Ainda que não possamos saber

Vamos simular sorrisos
Que no fundo são ciúmes mal expressados
Vamos fingir simulacros
Pra não admitirmos a dor que causa
Toda a lindeza da nossa presença

Impossibilitados de nos amar
Por alguma convenção socio-moral qualquer
Vamos deixar pra lá
Fingir que uma aventura romanesca
Não poderia germinar
Simular que a lindeza do encanto
Não é semente a cultivar
E que o olhar cruzado de canto
No entanto, na praia e no mar
Nem simboliza assim, tanto
O sentimento que soubemos afogar
No peito, na memória e nos lábios
Com sorrisos falsos e calados.