domingo, 27 de fevereiro de 2011

Carta aberta aos estudantes e acadêmicos do Brasil



Carta aberta aos estudantes e acadêmicos do Brasil


Todos nós já sonhamos um dia em chegar ao lugar onde agora nos encontramos. Mas o cheiro que vem dos pilares que sustentam os prédios de nossa Universidade não é universal. Alguns atores insensatos arrancaram da Universidade o que necessariamente nos é universal: o amor, a luta, a transformação, a contradição. Arrancaram de nossa comunidade aquilo que deveria caracterizar-lhe: o popular, o regional, o que é tipicamente francano, mineiro ou paulista, ou uma mescla engraçada e escancarada disso tudo. Arrancaram-nos a realidade do povo paulista e do povo brasileiro, trancafiando-nos com livros e teorias imbecis, que sozinhos, não dizem nada.

Sem o real, o que somos? Sem aquilo que podemos tocar; sem o calor do sol que nos queima a pele; sem o horrível odor da vinhaça atirada ao canavial para lembrarmos o drama dos cortadores de cana; sem relações verdadeiramente afetivas, criativas e inteligentes, que nos instigam a curiosidade pelo novo e mexem com a nossa estrutura; sem os beijos perpassados pelo sedutor sabor das poesias; sem as cores, dos insetos, das flores e das pinturas, todas obras de arte de atores cotidianos; sem a política, a discussão, a contestação, a luta, a dialética, as trocas, as negociações, e todas estas abstrações paupáveis – sem o aquilo que nos torna humanos, o que nos resta?

Certos atores insensatos permitiram a nossa entrada triunfal pelo palácio acadêmico da hipocrisia, sob uma condição: que nos travestíssemos de seres inanimados. Deveríamos nos aceitar burgueses, por tradição familiar; mas mais que isso, deveríamos manter-nos burgueses, muito embora esta palavra inspire, certas vezes, uma comodidade revoltante até para o próprio burguês. Poderíamos permanecer aqui, desde que não nos pintássemos de negro, de vermelho, de amarelo, de verde, de azul. Desde que estivéssemos bem vestidos, desde que tivéssemos conta poupança, Registro Geral e Título de Eleitor. Tendo passado e não agindo no presente, prometeram-nos que aqui encontraríamos o futuro.

Entretanto, o podre futuro que o sistema vigente insiste em nos meter guela-abaixo como o melhor de todos, esse futuro pintado com muito dinheiro, sucesso, técnica e viagens, todo esse futuro corrompido pelo fútil, pelo débil, pelo egoísta, esse futuro fétido que veste os mais pobres com a mortalha de mais miséria – esse futuro não é uma imposição, mas uma escolha. E não nos esqueçamos: quem faz uma escolha deve assumir as suas consequências.

Mas nós, nós que sentimos, nós que sentimos falta, nós que queremos mais, que estamos aprisionados pelas barreiras da burocracia e das convenções sociais, nós que fomos vítimas da moral, dos bons costumes, da polícia, da ditadura – nós somos loucos, porque o sistema nos fez sentir. E sendo loucos, não aceitamos a loucura aniquiladora do sistema.

Já é o tempo de resgatarmos a parcela de amor que o sistema nos arrancou. É chegada a hora do espasmo, da revolta. É chegada a chance de admitirmos a ausência de personalidade que adquirimos nestes anos todos. Estamos fedengosos, inertes, imobilizados, reprodutores, mecanicistas, frígidos e sem um pingo de criatividade. Somos atores ou ventríloquos? Somos a elite intelectual do país ou, em realidade, um bando de marionetes da verdadeira intelectualidade corruptora?

É a hora de esbarrarmos nas limitações cotidianas de nossas relações. É a hora do xingamento criativo, da crítica artística, da manobra política, da ação consciente, do livro queimado, do contato com a dor e o sofrimento. É a hora de subir no palanque, de subir na carteira, de afrontar as verdades inverossímeis de professores retrógrados. É a hora de conhecer o chão que se pisa, o povo que se convive, a luta que é lutada. É a hora para a gíria, para a favela, para o popular, para o resgate do que se perdeu e foi usurpado da história política e cultural do Brasil.

A história, com todas as suas vicissitudes, passa, e nós, acúmulo de forças contraprodutivas, vomitamos, embebedados, as nossas futilidades, as nossas vergonhas, as satisfações mercadologicamente carnais que chamamos de amores. A história corre... Mas há uma meia dúzia de sujeitos, que todos achavam serem loucos, falarem bobeiras, perpetrarem escatologias. Uma meia dúzia de sujeitos que insistia naquilo que era palpável, na crítica pontual, no trabalho de base, na solidariedade, na força de um partido político, na luta, na responsabilidade histórica. Essas pessoas, puts, esses caras falavam que eram um “ator social”, que possuíam uma tal de responsabilidade histórica, que deveriam lutar pela abertura dos arquivos da ditadura, pouco importando tivessem vivido, ou não, a dor da tortura. Diziam-se ser, na verdade, a própria idéia que seguiam e que lhes transpirava do corpo e da alma.

Tinha algo neles que parecia uma unidade, algo emergente e urgente, que lhes transbordava a pele, que lhes integrava o suor e o sangue. Não sei porque, gradativamente, fui sendo cativado por estes sujeitos. Tornei-me louco como eles. Passei a gritar, a arrancar a roupa, a negar com ou sem fundamento, a conhecer o diferente, a tocar o real, sentir o cheiro da vinhaça e descobrir que os bóias-frias me inspiravam uma dor e um sentimento que eu achava que não me pertenciam. E um dia, estranho e lindo, escolhi sentir essa dor. Foram os sujeitos: eles me levaram a experiências que inevitavelmente me transformaram.

É porque a filosofia não se realiza, é o real que filosofa. A realidade me cativou. Cativará a todos nós. Aproximemo-nos dos loucos. Estão escondidos em suas tavernas discutindo os rumos do país. Ninguém os ouve e, no entanto, o futuro é a sua chegada, a sua morada. Mudarão o país, mudarão a história, mudarão a Universidade, todos eles – porque decidiram mudar a si próprios. Aproveitemos essa estada nauseabunda durante o curso de graduação: caso encontremos algum louco, e ele nos enlouqueça, terá valido a pena.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Idiossincrasias de acaso, não por acaso




IDIOSSINCRASIAS DE ACASO, NÃO POR ACASO

Não por acaso, as idiossincrasias perfazem a natureza humana. A forma como reagimos aos mais diversos estímulos explica, em grande parte, a essência que pode estar conosco em dado momento. Mas cuidado: a essência é também uma idiossincrasia. A essência dos humanos, assim como os próprios humanos, transita. Mudamos de essência assim como mudamos de roupas. Isso não é bom ou ruim, estamos apenas assumindo o papel social mundano que uma sociedade doente está a nos exigir. Mudam a demanda, e logo tratamos de mudar a máscara.

Acho ridículo o fato de algumas questões políticas relevantes assumirem, sem muito esforço coletivo, contornos burlescos. É da natureza histórico-política brasileira o burlesco. Discutir um problema de forma burlesca. Agir de maneira burlesca. Negociar burlescamente. Nossa vivência política é a vivência de um teatro, na qual os atores assumem papéis de momento (indicando aí a plenitude da fisiologia). Nossos políticos, não Aqueles, mas todo e qualquer cidadão brasileiro assumiram que veem vantagem na hipocrisia sustentada. O teatro da política brasileira, já há algum tempo, vem assumindo a forma de um circo. Pinte-se de palhaço e adquira sua fantasia: o teatro, que se tornou circo, passa a ser a encenação de uma farsa corruptora.

Vestiu sua fantasia? Então podemos debater o ridículo da questão.

A comunidade unespiana, a comunidade francana e a sociedade brasileira como um todo possuem os seus problemas contumazes e próprios. Debater estes problemas é de crucial importância. Mas é importante também que escolhamos a forma como decidimos debater um problema. Podemos debater um problema numa assembléia ou num palco de teatro, diante de uma platéia. Podemos debater um problema sozinhos diante de um espelho, ou unidos em um coletivo unificado. A importância crucial da forma como escolhemos debater um problema de crucial importância reside tão somente na efetividade que pretendemos. É claro que toda discussão possui a sua finalidade. E esta finalidade pode, ou não, ser atingida. É uma questão de efetividade.

No teatro grego, a peça representava, como espelho imediato, as vicissitudes da cidade grega. O teatro era, e ainda é, uma forma de conscientização política por excelência. No palco, os atores descarregam a platéia de seus problemas sociais ao mesmo tempo que lhes revela qual sua verdadeira condição ou posição na sociedade. Um encenador francês chamado Bernard Dort explica que

“Num teatro de tipo aristotélico, palco e platéia são o espelho um do outro. O palco reflete a platéia; a platéia reflete o palco. O que se está representando no palco é a própria história dos que estão do outro lado da ribalta. A ação da obra, sua fábula, é a própria verdade de seus espectadores e o palco, literalmente, liberta a platéia da preocupação de sua história. Daí a catarse.”

Não sei se o povo brasileiro escolheu ter sua história representada num palco de teatro, onde uma farsa é encenada e sustentada há muito tempo. Não sei bem se o Congresso Nacional (o teatro da representação que se tornou o circo de uma farsa corruptora) foi uma escolha deliberada de nosso povo. De nós. Mas uma coisa é certa: o teatro representado no Congresso Nacional é o teatro que nos representa. Se não o escolhemos, ao mesmo tempo, não o negamos. E ele continua lá, cheio de palhaços. Uns até vestem fantasias. E outros, mais poderosos, já desistiram delas.

Tal qual no Congresso Nacional, inúmeras vezes assistimos na política a construção de palcos. Necessita-se palco e platéia para as deliberações políticas cruciais. Aqui e ali, circos são montados e são desfeitos, sem análises prévias ou relatórios ulteriores. Monta-se o palco, sustenta-se uma farsa, atinge-se uma finalidade efetivamente e o resto que se foda.

O palco da "elite intelectual brasileira", as universidades, seja (re)pública(das) ou privada, segue a mesma lógica. Às vezes precisamos assumir papel de palhaço, num palco e diante de uma platéia, para realizarmos conscientização política. Outras vezes, a consciência política está ali, embora não queiramos aceitar. Está ali, é uma consciência política podre, asquerosa, fétida, nauseabunda, inócua, imbecil e arrogante, mas não deixa de ser consciência política. Nós, daqui, não aceitamos de imediato porque achamos que consciência política é sempre algo positivo, que gera bons frutos na construção de uma sociedade mais madura e saudável. Nós daqui somos a exceção: a regra é a consciência política consciente e controladora, aproveitadora, hipócrita e fisiológica. Traidora. E para os que são daqui: aprendam a lidar com mais esta idiossincrasia.

O lugar que escolhi chamar de casa está em tempos de revolução cultural. Chama-se Unesp Franca, e é um sítio de diversidade. Neste sítio, alguns resolveram levar ao povo, à platéia, algumas questões relevantes. E isto é histórico aqui. A luta aqui é histórica. A luta, a conscientização, o debate marcam de maneira linda e delicada a consciência de jovens sonhadores que, sem alternativa, ou como alternativa, lutam.

Outros jovens, no entanto, preferem ser os palhaços de sua própria piada sem graça. E chamaram isso de democracia: montam um espaço congênere, cheio de gente das mais diversas classes sociais, econômicas e culturais (mas todos unespianos. Idênticos?). Depois que montam este espaço, dividem o espaço entre palco e platéia. Quem sobe ao palco sustenta sua farsa. Dá seus motivos e suas argumentações, opinando favoravelmente ou desfavoravelmente a um problema de crucial importância: uma festa. Chamaram isso de democracia: abriu-se a votação para que a platéia, ou o povo unespiano, escolhesse ter ou não ter sua festa. A escolha foi feita.

Chamaram isso de democracia: oprimir, mais uma vez, o grito do oprimido. E a questão política relevante, que subjaz a esta discussão? Morreu. A forma que o teatro assumiu substituiu o seu conteúdo. O mais importante não mais é a questão da homofobia na Unesp Franca, mas saber se vamos ou não vamos ficar bêbados em mais uma festinha que representará, mais uma vez, a acomodação de uma classe já acomodada pelos seus privilégios históricos.

Deixem-me dizer-lhes o que entendo por democracia. Deixem-me dar a minha vaga impressão do que tenho notado ser democracia. Vejo a democracia como um palco da pluralidade política onde os espaços são postos para que as pessoas se degladiem sem, contudo, aniquilarem-se. Lembra dos gladiadores romanos? Corrompidos, machucados, sangrando, ferindo uns aos outros, realizando seus conchavos, e ainda assim, vivos? A democracia é isso: é tão plural que permite a convivência da idéia de liberdade ao corpo ensanguentado que a sustentou.

Vivemos nessa democracia. E vivendo nela, posso afirmar algumas coisas sobre elementos que circulam pela comunidade unespiana. Há, na comunidade unespiana:

a) elementos homofóbicos e machistas. E mais ainda: há mulheres machistas que se vestem de feministas e homens homofóbicos que são também homossexuais. Talvez, pessoas que não se suportam consigo mesmas e precisam montar um boneco ou uma personagem para apresentarem a esta sociedade podre de valores. É o papel delas, dentro do nosso teatro;

b) elementos de perseguição a homossexuais, talvez não explícitos, que facilitem a minha percepção, a sua ou a alheia. Mas lembremos que o Brasil vive um período político no qual velhos e novos valores convivem num espaço pequeno. E, cá ente nós, porque você não fica sabendo explícita e diariamente, não acredita que há linchamentos, espancamentos, torturas psicológicas, torturas afetivas em qualquer espaço deste país, obscuramente, nos bastidores do que acreditamos ser real - ainda que seja na Unesp Franca?! Acreditam realmente nisso? Olhares maliciosos e conversas profanas, fofocas, não constituem perseguição pra você?

É por isso que afirmo, sem medo: é necessário realizar um debate sobre o "problema sócio-ético-cultural" acerca da opressão ao homossexualismo em nossa comunidade unespiana. MAS NÃO TOMANDO COMO MOTE UMA FESTA IMBECIL COMO É O MISS BIXO! QUE PORRA É ESSA?

Hoje está havendo uma disputa política no seio do corpo discente. O que está em disputa? Está em disputa a confirmação de um valor social, porque trata da inclusão e exclusão das pessoas. Está em disputa, ainda, uma questão moral e ética de impor uma cultura hegemonicamente por cima da outra; e, por fim, a disputa de uma questão juridica, afinal esse problema atinge, antes da dignidade humana do humano livre, a liberdade de um humano preso.

Essa questão atinge a liberdade de um ser humano considerado indigno por uma cultura corrupta e corruptora de se excluir os grupos mais fracos para sugar-lhes as qualidades que possuem, tão somente para que o grupo no comando mantenha e sustente seu poder operante. E são os vassalos deste poder operante da política liberal-burguesa que vomitam um monte de institutos jurídicos falidos para defender a salvaguarda de uma questão que necessita ser escancarada. Este juridiquês burocrático dos tribunais apenas anula, ou afasta temporariamente, a questão da condição humana, mais em jogo do que a parafernália e os brinquedos do mundo hipócrita do direito. De um direito que é a encenação de uma farsa num palco, para determinada platéia.

Independentemente de tudo isso, é preciso que sejamos cautelosos e afetivos. Não julguemos nem calculemos o tempo que as pessoas possam, eventualmente, demorar para tomarem consciência de seus dramas. Nossos piores medos são tão presentes e imediatos que preferimos negá-los do que enfrentá-los. Sabe por quê? Por medo. E isto é também uma questão jurídica, porque um ser humano com medo é um ser humano anulado, indigno e impotente.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Minha homenagem a Fernando Pessoa



Carta de perguntas ao querido Fernando Pessoa


Se hoje sou como sou
Há algum mau nisso?
Se hoje sou mal aquilo que era
Há pecado nisso?
Se diminuí, em vez de aumentar,
A culpa é também minha?

Se hoje pudesse ser o que penso ser
E, pensando e sendo, acontecesse de crer
O que diria? Que evoluí?

Que me tornarei um revolucionário?

Se ontem eu sou me perdendo
E amanhã posso fugir me encontrando
Que mal há, me diga, em fingir que me engano?

Só pra te enganar.

E se eu escolher
Não mais me ser?
E se por livre e espontânea vontade
Eu quisesse que o que tinha sido,
Aquilo que tinha passado, caído,
Não me servissem de memória
Nem pudessem definir minha identidade?

E se eu não quisesse registros?

Se amanhã queimar meus registros
E não me tornar o sendo que ontem fui
- O que você tem a ver com isso?

Devo-te satisfações?
Devo-te?
Não lhe devo nada
Porque nem eu mesmo posso saber de mim

Se ontem fui o que não pude não ser
Se me arrependi e neguei minhas falhas e omissões
Se tanto faz o que fizesse que fosse,
Ainda que eu tivesse erro e errando e errará mais um montes
Ainda assim não me cabe o perdão?

Que me diz de você?
O mesmo todos os dias diante do espelho?
Cada dia um diferente a respaldar o cotovelo?
E no banheiro?
Nos banhos e nas espumas,
São quantos e quantas de você?

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Entre filósofos e encenadores




Em nossa arte é preciso viver o papel a cada instante que o representamos e em todas as vezes. Cada vez que é recriado tem de ser vivido de novo e de novo encarnado.”

STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Trad. Pontes de Paula Lima. 22. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 47.

- Será que Stanislavski, com esta passagem, acabou por reformular os pensamentos de Nietzsche sobre o eterno-retorno e a vontade de potência que deriva dele? Nietzsche teve a ousadia de pensar que o tempo presente, o momento do instante-já, conquanto em movimento constante, retornará. E o presente momento, com todo o arcabouço de possibilidades que carrega consigo, retornará eternamente. Esta lição significa que sempre teremos em mãos a possibilidade de recriar o mundo a nossa volta. A esta capacidade humana Nietzsche deu o nome de vontade de potência.

Stanislavski, por sua vez, quis captar a mesma fugacidade potencializadora que perfaz o humano e retransmiti-la, artisticamente, no palco – diante de uma platéia. Ambos os autores traçaram caminhos de conscientização política pela própria postura autônoma e independente de afirmar-se uma idéia mediante uma ação, uma conduta, uma atitude também criadora, e portanto inovadora.

O primeiro quis nos afirmá-la por meio de uma filosofia universalizadora, que uniria em uma entidade única o cósmico e o mundano. Seria uma filosofia tão avassaladora que só poderia ser construída sob a negação em cascata da filosofia ocidental de até então. O segundo preferiu a compreensão da alma humana em contornos estéticos e emocionais, preferencialmente na expressão artística da arte cênica. O próprio teatro funciona como uma denúncia. Lírica, poética, inspiradora e original, contudo. E aqui se encaixaria o fator mais humano, a atuação do ator.

Nietzche assimilou ao seu eterno-retorno a vontade potente e criadora do humano como fator de transformação material da realidade. Interpretando-o, Deleuze afirmou que o eterno-retorno, ligado à idéia da vontade de potência, significa o eterno devir criador que recai ao humano. Stanislavski assimilou ao seu teatro-denúncia a emoção em atuar do humano, também criadora e potente, como fator básico de conscientização de seu público, sua platéia. Ambos entrelaçam-se aqui, creditando ao humano, ainda que em sua pequenez cósmica, a potencialidade inovadora de irromper no mundo, não apenas modificando-o, mas efetivamente reformulando-o, reestruturando revolucionariamente as suas bases antigas, recompondo e reorganizando os reais fatores de condução da vida humana, em suas relações sociais, políticas e afetivas.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Tudo nosso, nada nosso, queridos amigos.




Tudo nosso, nada nosso


Vivo os dias a sonhar um sonho que não é meu;
Um sonho que não foi imaginado ou inventado por mim,
Mas um sonho que também escolhi sonhar por uma questão de liberdade.

Falo do sonho da grande maioria dos seres humanos
Que por algum condicionamento cósmico,
Alguma determinação nada divina,
Tiveram a audácia e o despudor de conviverem nesta terra.

Vivo os dias a pensar um pensamento que não seja necessariamente meu.
Prefiro pensar pela perspectiva daquele que não sou eu:
Quero pensar o outro.
Porque é apenas pensando no outro
Que se abre sobre mim a possibilidade de me compreender a mim mesmo.

Meus olhos, meus desejos, minhas dores e também meus prazeres:
Quando olho para um canavial e para os bóias-frias
É ali que encontro uma parcela de angústia e dor que eu achei que não me pertenciam.

Minhas idéias, minhas filosofias juvenis, minhas emoções momentâneas:
Quando sinto o passado de meu país,
Constantemente estuprado e explorado em suas riquezas,
Manchado do sangue de todos aqueles que decidiram lutar
Por uma causa que transcendesse o egoísmo do qual somos vítimas assim que nascemos
É que me descubro débil ou forte diante da responsabilidade histórica
Por tudo aquilo que fiz, mas, principalmente, pelo que deixei de fazer.

Assim eu me descubro no ódio e no amor,
Assim eu me percebo sorrindo ou franzindo a testa.
Na pobreza e na fartura, seja a minha ou a sua.

Todos os dias caem dos meus olhos tantas lágrimas
Tantas águas que eu sei que não são minhas.
Que nunca foram dores minhas
Porque eu nunca senti a dor concreta da fome.

Mas há um espelho chamado realidade.
Neste espelho, vejo o reflexo de um garoto
Um garoto mimado ou sensível
Que chora um choro tantas vezes chorado
E que assim se alia ao sonho daqueles que conseguem sonhar,
Que sonham como a única alternativa para continuarem vivendo.

Neste momento, decido que estas lágrimas também são minhas.
E que esta luta, esta luta que achei não ser também a minha luta
É nossa. Minha e sua.

Eu choro os dias para viver uma vida que não seja só a minha vida
Para que eu adquira a parcela de audácia e despudor
Tão necessários para convivermos nesta terra.

Quando um monte de lixo amontoado e empilhado
Forma uma planície que será a moradia de tantas crianças
Crianças tristes, felizes, saudáveis ou doentes
Eu compreendo a futilidade e a estupidez das minhas embalagens descartáveis.

Assim eu me descubro imbecil ou criativo.
Assim eu me percebo atuante ou inerte.

Todos os dias eu escrevo palavras já ditas ou já caladas,
Todos os dias eu expresso idéias e opiniões que não foram por mim inventadas.

Prefiro que o mudo fale pela minha boca.
Prefiro que aquele operário que ficou cego da caldeira
Tenha a possibilidade de enxergar com os meus olhos.

Sem vocês, sem todos vocês, corruptos ou solidários,
Sem vocês, meus amigos, amados ou desgraçados,
Sem vocês eu não sou. Sem vocês eu só me pretendo.
Sem vocês não podemos ser. Sozinhos não existimos.

Sei que sou humano porque identifiquei em vocês a minha fragilidade.
Sei que sou humano porque vocês identificaram em mim a sua fragilidade.

Sejamos humanos, juntos e unidos,
Nossa inevitável fragilidade é o caminho para a universalidade.