quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Os sentimentos de Sartre em nós



A primeira coisa sobre a qual refleti hoje ao acordar foi minha postura diante dos últimos acontecimentos. Mais que isso, nos efeitos que o meu procedimento despendeu no mundo, nas pessoas, no sentimento dessas pessoas. Lembrei-me quando Sartre diz, no Existencialismo é um Humanismo, que os sentimentos também são definidos por ações.


Ora, só há como identificarmos um sentimento por alguém a partir do momento que certas atitudes, posturas e escolhas são exercidas de maneira concreta. Os sentimentos, mesmo para quem os sente, não podem ser definidos a priori. Não podemos identificar a pulsão que nos impele a se mover e a agir sem antes nos mover, sem antes agir. A ação, o gesto, os movimentos corporais são justamente a única catarse que o sentimento encontra para irromper no mundo.


Não posso consultar a minha memória, que registrou todas minhas impressões sensoriais, para decidir sobre qual caminho vou percorrer. Percorrendo é que me descubro. Na auto-descoberta é que me percebo amando. Em outras palavras, se sinto uma forma de anseio que viso realizar, mas uma pessoa que me é afeta não concorda com aquilo, o único caminho para que se descubra qual dos dois vou escolher somente pode ser a própria escolha. Por mais que eu já tenha experimentado o sabor e o dissabor que os acontecimentos da vida me causam - isto é, a realização daquele desejo, a presença daquela pessoa - nunca poderei ter por revelado qual deles prefiro antes da própria escolha. Não posso me perguntar “de qual gosto mais” para saber como proceder. É procedendo que descobrirei de qual eu estou gostando mais no presente momento.


É nossa escolha, de maneira essencial, que faz o mundo irromper dentro de nós, debater-se dentro de nós. Na mesma medida, só mesmo a escolha viabiliza o processo no qual o outro vai me captar, me entender, me compreender, me sentir. A ação da escolha faz o mundo irromper em mim e, neste processo, irrompo no mundo. É no olhar e na palavra que descubro o mundo e que me revelo para ele; nunca em exercícios de introspecção consultiva.


Talvez seja isto o que Sartre sentia por existencialismo. Viver sob o leque infinito e transbordante do gesto, das possibilidades que a ação pode viabilizar ou, até mesmo, gerar. A ação é tão fabulosa que é capaz de criar artifícios e seduções de acaso que, no mais das vezes, servem de instrumento para que a dominação seja exercida de forma afetuosa, aceitável, legítima.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Saudades, por Clarice Lispector, ao som de "I see you", tema de Avatar

Saudades

Sinto saudades de tudo que marcou a minha vida.
Quando vejo retratos, quando sinto cheiros,
quando escuto uma voz, quando me lembro do passado,
eu sinto saudades...

Sinto saudades de amigos que nunca mais vi,
de pessoas com quem não mais falei ou cruzei...

Sinto saudades da minha infância,
do meu primeiro amor, do meu segundo, do terceiro,
do penúltimo e daqueles que ainda vou ter, se Deus quiser...

Sinto saudades do presente,
que não aproveitei de todo,
lembrando do passado
e apostando no futuro...

Sinto saudades do futuro,
que se idealizado,
provavelmente não será do jeito que eu penso que vai ser...

Sinto saudades de quem me deixou e de quem eu deixei!
De quem disse que viria
e nem apareceu;
de quem apareceu correndo,
sem me conhecer direito,
de quem nunca vou ter a oportunidade de conhecer.

Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi direito!

Daqueles que não tiveram
como me dizer adeus;
de gente que passou na calçada contrária da minha vida
e que só enxerguei de vislumbre!

Sinto saudades de coisas que tive
e de outras que não tive
mas quis muito ter!

Sinto saudades de coisas
que nem sei se existiram.

Sinto saudades de coisas sérias,
de coisas hilariantes,
de casos, de experiências...

Sinto saudades do cachorrinho que eu tive um dia
e que me amava fielmente, como só os cães são capazes de fazer!

Sinto saudades dos livros que li e que me fizeram viajar!

Sinto saudades dos discos que ouvi e que me fizeram sonhar,

Sinto saudades das coisas que vivi
e das que deixei passar,
sem curtir na totalidade.

Quantas vezes tenho vontade de encontrar não sei o que...
não sei onde...
para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem onde perdi...

Vejo o mundo girando e penso que poderia estar sentindo saudades
Em japonês, em russo,
em italiano, em inglês...
mas que minha saudade,
por eu ter nascido no Brasil,
só fala português, embora, lá no fundo, possa ser poliglota.

Aliás, dizem que costuma-se usar sempre a língua pátria,
espontaneamente quando
estamos desesperados...
para contar dinheiro... fazer amor...
declarar sentimentos fortes...
seja lá em que lugar do mundo estejamos.

Eu acredito que um simples
"I miss you"
ou seja lá
como possamos traduzir saudade em outra língua,
nunca terá a mesma força e significado da nossa palavrinha.

Talvez não exprima corretamente
a imensa falta
que sentimos de coisas
ou pessoas queridas.

E é por isso que eu tenho mais saudades...
Porque encontrei uma palavra
para usar todas as vezes
em que sinto este aperto no peito,
meio nostálgico, meio gostoso,
mas que funciona melhor
do que um sinal vital
quando se quer falar de vida
e de sentimentos.

Ela é a prova inequívoca
de que somos sensíveis!
De que amamos muito
o que tivemos
e lamentamos as coisas boas
que perdemos ao longo da nossa existência...


Clarice Lispector