quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O poder do Direito ou Direito à mercê do poder?



A história nos mostra que a formação política e a configuração jurídica de nossas instituições não se processaram de maneira convencional. A importação crua de teorias e modelos jurídicos tipicamente europeus – nascidos a partir de reverberações sobre uma realidade completamente diferente da nossa – ensejou o surgimento de institutos anômalos, relações jurídicas esdrúxulas e concentração do poder político. Muito embora nossos agentes estatais tenham-se dedicado à tarefa de construir um imenso arcabouço normativo ao longo dos anos, o fato é que as decisões de interesse público continuam circunscritas à esfera do poder.

Algo fica evidente: os criadores e aplicadores do Direito que ocupam os espaços estatais são os principais corruptores do sistema jurídico-legal. Desrespeitam o próprio sentido normativo das disposições constitucionais. Transgridem a projeção ético-política simbolizada no texto de nossa Constituição, tornando a realidade constitucional decrépita e nauseabunda. Nossa própria vivência social e jurídica desatrela-se das condutas fundamentais prescritas na base de nosso ordenamento normativo: não cremos que o direito funcionará, e acabamos por contribuir com a sua vulgarização.

No meio jurídico, os litígios e as disputas realizam-se de maneira mortificada: o conteúdo do processo, a matéria política que necessita negociação e diálogo, o âmago do problema social não é discutido . O conteúdo é substituído pela forma. Os juristas preferem posicionar-se na cômoda posição da técnica, à mercê das manifestações burocráticas do direito positivado. Muito embora responsáveis pela revitalização de nosso entendimento ontológico do Direito, modelando-o de acordo com as demandas sociais e políticas, os juristas recuam a esta tarefa. Preferem a reprodução mecânica e retrógrada, a repetição do mesmo. Propõem acordos de momento que apenas prolongam os problemas que verdadeiramente afligem a população.

No meio político, por sua vez, os litígios e as disputas realizam-se de maneira vivamente anárquica: as matérias políticas que necessitam negociação e diálogo são disputadas pelos agentes estatais inescrupulosamente. Não há um eixo normativo que conduza sua conduta; não há limitações formais ou solenes para as negociações de interesse público. As decisões que atingirão em cheio a vida social de nosso povo são concretizadas mediante expedientes artificiosos, subreptícios, latentes, disfarçados, simbólicos . Os verdadeiros problemas não encontram solução concreta diante de diversos jogos de interesses partidários, trocas de votos, clientelismo. As manobras políticas ocorrem à margem do sistema jurídico-legal, são manobras corruptoras, golpistas, desrespeitosas e desrespeitáveis . A política é feita aquém e além da lei – nunca atrelada a sua vontade normatizadora.

O saldo é apenas um: fica cada vez mais difícil encontrar o “ser” deste Direito. Não há valores incrustados na mente de juristas e agentes estatais como estes. Não há valores na mente de juristas que manejam as Leis como peças de um quebra-cabeça que já sabem estar incompleto. Não há valores na mente de agentes estatais que possuem uma conduta volátil, inconstante, mutável, submissa a anseios individualistas e circunstanciais. Não há valores incrustados na mente daqueles que montam projetos e programas de governo com Leis de papel , com regramentos, regimentos, edifícios normativos inteiros que nunca serão cumpridos, nunca se efetivarão. Edifícios normativos que servem apenas para serem demolidos a qualquer tempo, dando lugar a outros edifícios, como se fossem os brinquedos de um jogo lúdico. Brinquedos – operados não por crianças, mas por agentes intencionados.

Diria Foucault: "O Direito é [...] uma forma regulamentada de fazer guerra" (A verdade e as formas jurídicas)

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Para que não nos culpemos por nossa fragilidade





Gostaria de conversar com alguém
Embora ainda não conheça esta pessoa.
Se pudesse, sairia pelos cantos do mundo
Assobiando a ironia que há nas palavras que já foram ditas.

A verdade está contida nas palavras impensadas.

No caminho que passo encontro um asco.
No maço do cigarro do cigano,
Que fuma e medita e pensa assim.

E então me vem um calafrio de despedida
Me toca e me desperta da agonia
Do adeus inesperado e já aceito.

Do nosso jeito, pro nosso peito
Pra que sejamos mais que a palavra morta "humano".

Você vem com a sua normalidade e o seu convencionalismo
E me diz que conseguiu ser apenas e exclusivamente do seu jeito
Com personalidade, com autenticidade, com maturidade;
Mas o que não percebe é (o) que O Sistema se dissolveu no seu corpo.

A sua mente absorveu uma verdade que não é a sua,
E nos seus meandros, nas suas escolhas, nas suas atitudes
- E principalmente nos seus preconceitos -
Você acabou de reproduzir a mesquinharia Deles.

Eu me sinto mal. Eu não consigo me assumir enquanto personalidade.
Náusea, nojo, incômodo, impotência
E a incapacidade de retirar sensações ruins do corpo através de lágrimas e vômitos.

Sete bilhões de dentes podres na boca do capitalismo,
Duas cicatrizes e mais cinco mil anos de velhice em seu rosto sorridente.

Me diz quantas bombas precisam explodir por causa do lucro.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010





Ainda que me acabassem as armas,
Haveria as flores e eu as utilizaria na batalha.

Mesmo que me tirassem os sentidos,
Não deixaria de saber por meio dos meus instintos.

Seria-lhes uma voz que ecoa
Ainda que me deixassem deserto,
Aprisionado em celas,
Escondido em exílios,
Mutilado em estacas,
Esquecido nos livros
E assassinado para a história.

Meus olhos continuarão abertos durante toda a guerra travada,
Mesmo que me torturem por alguns segundos, por minutos, horas, dias, vidas...

Continuaria indignado e incomodado
Ainda que me concedessem o eterno perdão pelos erros da humanidade.

Choraria
Ainda que não me restassem lágrimas.

Choraria
Ainda que me faltasse o amor,
Ainda que me faltasse a quem amar
E alguém por quem chorar.

Eu lutaria com as flores,
E assim golpearia as maldades,
Com tiros, com socos, com as bombas,
As ideológicas e as biológicas,
Com discursos, com a ciência,
Com meu trabalho e minha fé.

E, se fosse preciso, eu lutaria com as flores.

Eu sinto as dores dos torturados de todas as épocas,
Mas não cedo. Ainda que me dêem o choque.
Ainda que me façam inalar fumaça e tentem me afogar.
Mesmo que partam os meus ossos,
Mesmo que me destruam a capacidade de acreditar em tudo o que é humano,
Frágil, belo, sensível, saudável, construtivo, positivo.

Ainda que me cometessem o crime de arrancar a voz,
Eu seria um grito. Um grito de lágrimas, de flores e sentidos.

Eu indigno e incomodo
Porque não perdoei nenhum de vocês.

Entendam que a dialética permanecerá,
E mesmo que não queiramos, seremos a obra de seus resultados.

Vocês aceitarão a constância do eterno movimento transformador,
Ainda que não acreditem em nenhuma dessas palavras,
Mesmo que eu tenha que repeti-las de inúmeras formas distintas.

Revoltemo-nos.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Eu sou latino-tupiniquim



A realidade brasileira está emporcalhada.
Temos o melhor presidente de todos os tempos
E temos também a certeza de que nada mudou.

Nenhuma das principais peças do tabuleiro foi mexida.

"O Cara" veio do povo, articulou a força por baixo,
Sofreu o martírio da pobreza seca e rachada,
Representou seus semelhantes,
Foi o objeto das maiores expectativas,
Tornou-se, irrefutavelmente, o emblema de seu partido,
Obteu os melhores índices estatísticos,
Os mais refinados elogios,
Prêmios variados e variáveis,
Refundou a política brasileira,

E meu país, amigo, continua uma merda.

Eu me lembro, mesmo sem ter visto,
Que faz mais de quinhentos anos
Que um grupinho desgraçado
Suga as riquezas naturais,
Esfola os humanos sociais,
Aniquila todo potencial criativo existente
Desmanchando a moral e a consciência,
Usurpando, parasitando, cagando em tudo!

E rindo a risada gorda e cômoda daquele que ocupa a poltrona da hipocrisia.

Nem "O Cara" conseguiu fazer alguma coisa...
Na verdade, "O Cara" fez o jogo dos caras...
E agora, o que nos restou?
No que vamos acreditar?

No movimento, na militância, nesse esforço coletivo,
Na ciência, no trabalho do partido,
Em alguma religião, alguma organização política,
Numa instituição talvez, um ordenamento normativo,
Numa carta política, numa relação de produção,
Num método pra interpretar a realidade e tentar transformá-la,
Nas drogas, no sexo, em video-game, no bacon com catupiry,
Nas banalidades e superficialidades,
Na morte, em Jesus, em Buda, Gandhi,
Chico Xavier, Copa do Mundo, Galvão Bueno,
No Amor, na piedade, na moral, na educação, na pedagogia,
Na conscientização política pelo esporte,
No trabalho de base, na caridade, na sociedade,
No bom selvagem, em Deus, no Caos,

Depois de tudo que aconteceu e ainda acontece, no que podemos acreditar?!

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Uma carta de amor




Uma carta de amor, com amor, para um amor...



Algumas pessoas se vão e, contrariando as regras do jogo humano, adquirem mais importância ainda. É que a distância é relativa. Algumas pessoas estão fisicamente distantes, mas mesmo assim compreendemos a evidência: é na distância que a importância de alguém se revela. Quanto mais longe, mais sensíveis ficamos, e assim sentimos qual peça essencial do nosso tabuleiro aquela pessoa conseguiu mexer. E algumas vezes, certas pessoas abalam o nosso edifício inteiro.

A vida, com sua luta e seu sofrimento, às vezes nos enrijece, nos enrijece demais, fazendo-nos esquecer que certas histórias não são apenas ficção literária. É que o real supera a ficção. Por isso que aqui e ali existem essas histórias sobre relações e relacionamentos humanos tão fortes que conseguiram se manter e se desenvolver nas piores adversidades. O humano, em conjunto, se reinventa. O nazista e a judia se amarão, tal qual o escravo e a senhora.

O tempo, assim como a distância, também não deixa de ser uma invenção humana. O que há de divino nessa idéia é que não pertencemos especificamente a algum lugar, a algum tempo, a alguma pessoa, ou a alguma idéia. Estamos volúveis, voláteis e então suscetíveis. Assim a liberdade se funda: na perda, na forma positiva de enxergarmos a perda. Porque nada se perde ou se acrescenta, mas apenas se transforma. Neste longo processo, fica a chance pra quem, rompendo com todas as naturais e ilógicas circunstâncias, decide amar. E ama, segue amando, o que quer que aconteça, onde quer que esteja, da forma como estiver.

Ser humano é ser diferente. Diferente porque eles conseguem amar algo que está contido em sua memória ou sua idéia. O humano tem a capacidade de amar sem estar em contato com o objeto amado. É que o contato também é relativo, e vez ou outra acabamos tocando aquelas pessoas mais especiais, na ânsia de que também nos toquem com a sua lembrança. Eu tenho a certeza de que o ser humano, quando se lembra de outro alguém com amor, estabelece uma forma de contato que nem mesmo a sua espécie capta e percebe. Ambos se lembram e se degustam na lembrança. São comunicações sem mediações, sem pontes pra que consigamos entendê-las. Porque o importante é nos comunicarmos, sempre.

Veio você, e com uma naturalidade absurda, brincou com a minha estrutura. Me reordenou e me reinventou. Mexeu em duas peças, e tive que repensar como reordenar meu tabuleiro inteiro. Você tinha apenas algumas horas e um pequeno conjunto de palavras, e mesmo assim obteve o melhor aproveitamento nesta mágica do encanto. Do encanto dos encontros e desencontros. E a prova disso, de que o que hoje eu sou contém uma parte de você; que a sua forma de existir ajudou a preencher com conteúdo o pote da minha essência; que tudo é real e vivo hoje como foi ontem e como será amanhã; a prova disso é que hoje eu sou assim...

sábado, 17 de julho de 2010

Clarice Lispector sem fronteiras...




Já escondi um AMOR com medo de perdê-lo, já perdi um AMOR por escondê-lo.
Já segurei nas mãos de alguém por medo, já tive tanto medo, ao ponto de nem sentir minhas mãos.
Já expulsei pessoas que amava de minha vida, já me arrependi por isso.
Já passei noites chorando até pegar no sono, já fui dormir tão feliz, ao ponto de nem conseguir fechar os olhos.
Já acreditei em amores perfeitos, já descobri que eles não existem.
Já amei pessoas que me decepcionaram, já decepcionei pessoas que me amaram.
Já passei horas na frente do espelho tentando descobrir quem sou, já tive tanta certeza de mim, ao ponto de querer sumir.
Já menti e me arrependi depois, já falei a verdade e também me arrependi.
Já fingi não dar importância às pessoas que amava, para mais tarde chorar quieta em meu canto.
Já sorri chorando lágrimas de tristeza, já chorei de tanto rir.
Já acreditei em pessoas que não valiam a pena, já deixei de acreditar nas que realmente valiam.
Já tive crises de riso quando não podia.
Já quebrei pratos, copos e vasos, de raiva.
Já senti muita falta de alguém, mas nunca lhe disse.
Já gritei quando deveria calar, já calei quando deveria gritar.
Muitas vezes deixei de falar o que penso para agradar uns, outras vezes falei o que não pensava para magoar outros.
Já fingi ser o que não sou para agradar uns, já fingi ser o que não sou para desagradar outros.
Já contei piadas e mais piadas sem graça, apenas para ver um amigo feliz.
Já inventei histórias com final feliz para dar esperança a quem precisava.
Já sonhei demais, ao ponto de confundir com a realidade... Já tive medo do escuro, hoje no escuro "me acho, me agacho, fico ali".
Já cai inúmeras vezes achando que não iria me reerguer, já me reergui inúmeras vezes achando que não cairia mais.
Já liguei para quem não queria apenas para não ligar para quem realmente queria.
Já corri atrás de um carro, por ele levar embora, quem eu amava.
Já chamei pela mamãe no meio da noite fugindo de um pesadelo. Mas ela não apareceu e foi um pesadelo maior ainda.
Já chamei pessoas próximas de "amigo" e descobri que não eram... Algumas pessoas nunca precisei chamar de nada e sempre foram e serão especiais para mim.
Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre.
Não me mostre o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração!
Não me façam ser o que não sou, não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente!
Não sei amar pela metade, não sei viver de mentiras, não sei voar com os pés no chão.
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra SEMPRE!
Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das idéias mais insanas, dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais fortes.
Tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos.
Você pode até me empurrar de um penhasco q eu vou dizer:
- E daí? EU ADORO VOAR!


Clarice Lispector

segunda-feira, 19 de abril de 2010

A última emboscada contra Che Guevara



A última emboscada contra Che Guevara


Che Guevara. O homem-revolução.
Nasceu, viveu e morreu
Pela luta do povo cubano
E de todos aqueles que possuíam fé na transformação.

Nos seus olhos estava o brilho da luta.
Em suas lágrimas estavam centelhas de esperança.
No seu sangue e na sua dor, as pequenas vitórias cotidianas.

Seria traído e sabia disso.
Estava preparado para padecer e se tornar o símbolo da cotinuidade.
Não haveria uma vitória final. Apenas a luta constante.
Por algum sentimento de acaso, desprovido de racionalidade e lógica,
Sentimos que assim seria seu depoimento final
Se pudesse descrever as sensações que sentia
Em seus momentos finais...

Depois de tantos anos encarando a realidade com perseverança,
Com toda a perseverança de José Martí e dos camponeses sofredores,
De meus irmãos Fidel e Raúl,
Na saudade e na falta de todos os meus afetos,
É difícil encarar esta transição momentânea.

Não vislumbro meu padecimento humano como o fim.
Meus olhos fecham-se apenas para que as portas do futuro continuem sendo abertas.
Vivi acreditando que minha existência poderia adquirir um significado maior
Um significado cuja amplitude poderia tocar
Os sentimentos de todos os seres humanos.
E foi assim em cada instante de minha vida,
Em cada gesto, cada escolha e cada atitude.
Tornei-me parte de uma união conjunta de nossas emoções.

Amemos
Porque o amor é a maior característica dos revolucionários.

Amemos mais a cada dia,
Amemos cada dia com menos preconceito
E depositemos em nossas atitudes diárias estes sonhos de amor.

Amem também, meus companheiros e companheiras.
A felicidade coletiva nasce de maneira conjunta
Nas derrotas e nas singelas vitórias.

Senti com toda a sensibilidade da qual fui capaz
E desejo que meu legado seja o de uma bela flor
Cuja beleza inspire a delicadez para o entendimento afetivo dos povos
E cuja força inspire a constante luta transformadora
Que todos nós pudemos viabilizar.

Amemos e celebremos
Como os irmãos que dividem o pão à mesa
Como os irmãos que dividem a fome durante a guerra.

Gostaria, com toda a sinceridade,
De continuar dividindo com todos vocês
Aquelas experiências mais simples de nossas existências
Com fé e esperança.

Mas sei que tenho apenas de cumprir uma parcela da totalidade revolucionária.
Deixo o espaço para os grandes revolucionários que comporão a luta coletiva.

Cubanos, argentinos, bolivianos, brasileiros,
Camponeses, jovens, oprimidos,
Não desistamos deste contínuo processo que nos restou
Como a única alternativa para atingirmos o verdadeiro sentido da humanidade.

Que o povo latino-americano jamais desista da luta
E que minha morte sirva-lhes de inspiração.

Obrigado pela oportunidade,
Morro sorrindo e sonhando com o dia que não pude viver.
Graças a vocês descobri a minha identidade.
Graças a vocês me descobri inserido no significado maior da vontade humana,
Neste processo do qual tive a honra de participar ao seu lado.

quarta-feira, 3 de março de 2010

A pausa também faz parte do cotidiano




A pausa também faz parte do cotidiano


Estou estreitando uma relação contigo neste exato instante. Não me ache deselegante pelo simples fato de estar criando este espaço de aproximação unicamente por meio das palavras, e da nossa linguagem, tantas vezes incompreensível e incompreendida. Se assim o faço é porque me encontrei nas circunstâncias que sobraram no mundo – não pude escolhê-las, apenas me descobrir enquanto vivia inserido nelas. Não escolho minhas circunstâncias, mas me descubro ao agir diante delas... Circunstâncias...

Em algum momento, provavelmente neste instante-já, neste pequeno limiar entre meus dedos no teclado e o zinzinar dos seus olhos nas letras, palavras, orações, significações e incursões deste discurso – alguém morre. Mas não pense que isso é uma fatalidade. Na regra natural da existência, as energias se transformam, e neste transformar, agrupam-se de maneira diferente. Seria maçante demais existir apenas nesta forma humanamente encarnada.

É interessante que experimentemos o outro. É natural que definhemos, que nossos órgãos e nossa mente demonstrem-se irremediavelmente exaustos e decepcionados perante as perspectivas adquiridas em vida. Morrer não é o fim, nem por alguns instantes. O mais difícil, nesta conjuntura, não é o ato, ou a omissão, ou a escolha de morrer – mas, ao contrário, aceitar a morte alheia, a morte do outro, daquele que nos é afeto, de nossos amados, de nossos ídolos.

E, no entanto, choremos ou rimos, alguém morreu na frente de minha casa e da sua, ali no asfalto molhado da chuva, quente do sol e sujo da humanidade – ali acabou de morrer um motoqueiro, que era traficante, político, empresário, um pai de família, branco, amarelo, preto, vermelho, caucasiano, oriental, afrodescendente ou apinayé. Morreu, é uma fatalidade cruel, cruelíssima, não para ele, mas pela sua primeira namorada, pelo primeiro filho, e talvez pelo primeiro neto.

Pensar no cotidiano... a morte é tão cotidiana, pensar nela é também tão imensamente cotidiano. Pensar a morte é cotidiano pela constância, pelo repetir-se eternamente no tempo, pelo desejo de um porvir repetido, próximo do idêntico, um devir reflexo do jazer. Estar preso no ciclo do “pensar a morte enquanto se vive” é uma dádiva, direito, façanha, burrice ou esquisitice exclusivamente humana. Nós somos os únicos a despender tempo pensando a morte.

Agora, morreu alguém com um tiro no peito, com cólera, de fome e de sede – o mais dos absurdos – e também de suicídio. As minhas palavras continuam a ser concebidas por movimentos esquisitos dos meus dedos, nossa relação é muito mais íntima, mas nem por isso o sol deixou de secar as gotas da chuva e das lágrimas...

Nesta constância transformadoramente cíclica, teríamos a chance, em alguns momentos crônicos de nosso cotidiano-crônica, de experimentar a pausa do tempo? Digo, naquele arfar de quase-vida-quase-morte, naquela inspiração, inspirada ou expirada, nas epifanias de acaso – será que em algum momento o tempo se concentra num espaço determinado e se barra na sua continuação?

Escute... é o grito de alguém que está sendo torturado. Essa pessoa está morta? Estávamos concebendo uma crônica sobre a presença cotidiana da morte e de repente... Escutou? Nossa, estou todo arrepiado... Os pêlos do corpo se levantam, e isso me parece a catarse de energias angustiantes e asfixiantes, descarregadas em meu corpo em forma de hormônios, pela tão singela captação sonora deste... Ai! O que estarão fazendo com ela? Pois é mesmo um grito de mulher...

Essa pessoa está viva? Pergunto porque, talvez por algumas evidências, morta ela não está. Quando morremos não nos mexemos... o grito também é uma movimentação modificadora, e se ela se movimenta nestes contornos, morta não está... Mas estaria viva, esta mulher? A tortura não mata, mas ao mesmo tempo não deixa viver.

Estaria grávida? Está apavorada, talvez machucada... Arranharam-na, despiram-na, chutaram-na. Depois, estupraram-na. Ejacularam em seus olhos, que são azuis, que já foram objeto de tantos elogios, que já se enamoraram e também se esqueceram e também sofreram a decepção dos que se permitem amar... Azuis, lindos, e eu estou dizendo a verdade, mesmo que se exija esse sentimento de nojo e ojeriza para aceitar essa verdade: ejacularam – e eram seis – em seus olhos azuis...

Agora, a tortura é sim cotidiana.

Um político disse que não podemos deixar de pensar a corrupção sob dois aspectos:

a) primeiro aspecto: a corrupção imediata e direta, isto é, aquele sujeito investido do trato da coisa pública colocar dinheiro nas meias e dizer que é pra comprar panetone;

b) segundo aspecto: a corrupção nas prioridades, ou seja, aquele sujeito investido do trato da coisa pública (que só pôde subir ali onde está porque muitas pessoas, em sua maioria pobres, oprimidas e necessitadas, fizeram um aceno permitindo que subisse) que, em vez de cuidar de alimentação, saúde, trabalho e educação, faz viaduto, faz estátua, faz palácio e dá nome de relevo pro palácio...

Seguraram seus cabelos, ali na proximidade da nuca, e puxaram com muita força em direção ao chão... Sentada e algemada com os braços por trás das costas era um animalzinho indefeso. Sujo de sangue. Seu próprio sangue, e sangue de dois ou três cabos. Aqueles cabos eram todos casados com mulheres, lindas, feias, burguesas e cosméticas, solícitas ou vagabundas. Casados, afetivos, mas ali em seu trabalho eles eram um pouco mais rústicos, secos, frios e frígidos, maldosos, impiedosos e desgraçados. Desagraciados. A graça, ali naquele momento, jamais lhes recairia...

Ela estava suja de excremento também. Fezes, urina, cuspe. Os cabos podem ser alemães, estadunidenses ou brasileiros. Tanto faz, todos são filhos da puta e torturadores. Não digo que eles mereçam a morte, porque a morte é um presente, mas que o melhor seria mesmo aniquila-los a todos, pra que evitemos de coexistir com a maléfica presença da tortura e de torturadores.

Encostaram-lhe o cano do revólver na nuca, era gélido, metálico, escuro, mas tudo estava escuro, e o pavor era muito mais aterrorizante no escuro. Apenas houvera claridade no momento do estupro – tudo o que foi feito antes e depois foi realizado na escuridão apavorante que a inexistência da visão produz.

Pense que ela estava sendo torturada por ser comunista, por ter idéias, ideais e ideologias que visam modificar drasticamente o sistema-mundo no qual vivemos. Pense que ela estava sendo torturada por ser também uma torturadora nazista, na época em que Hitler centralizou o ódio do mundo, e esta tortura era o seu castigo, a sua sanção, a sua pena.

Pense que ela estava sendo torturada apenas na ficção das minhas palavras. Pense que ela estava sendo torturada como forma de retratar a tortura sofrida por você, mulher. Pense que ela estava sendo torturada para representar o grito de todos os torturados gritando concomitantemente juntos, unidos por um ideal de revolta, na repudia e no amargo sentimento de complacência para produzir uma luta lutada com paz, com o exemplo que a paz produz, e não com mais ódio.

Pense que ela estava sendo torturada apenas para que lembremos, numa crônica, que a tortura é cotidiana. Pense que Maria Isabela viveu cinco mil anos de existência em apenas cinco horas de tortura. Que hoje vive, mas que por cinco horas não viveu. Nem morreu.

A história de Maria Isabela parou o tempo, o nosso e o dela.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O desejo é privado, enquanto que o interesse é público.



Goethe dizia que a obra de arte poderia desencadear efeitos morais nos seres humanos, mas que exigir uma finalidade moral por parte do artista seria induzi-lo a arruinar a sua própria obra. Penso que com a ciência ocorre exatamente o inverso: a ciência pode não desencadear efeitos morais por sobre nossas vidas, mas exigir uma finalidade moral por parte do cientista é nossa obrigação. Mais que direito, é nosso dever cobrar do cientista esclarecimentos acerca de quais tipos de moral a sua ciência é capaz de engendrar. No mínimo, qual moral ele mesmo pretende engendrar por meio da forja que é a sua ciência.

Nenhuma ciência é despropositada e, por mais que se tente, amoral. Toda produção científica é movida por desejos e interesses. Os desejos são anseios voltados para a esfera da nossa individualidade, enquanto que os interesses são anseios que podem transcender nossa personalidade, e ganharem conotação político-corporativista.

Isso porque é possível exercer um desejo de maneira unilateral. Sozinho, posso concretizar meus desejos básicos, transformando assim a sensação metafísica de necessidade em matéria. Mas meus interesses sempre são motivados e forjados por relações em sociedade. No mais das vezes, os interesses são artifícios criados pelo sistema que acabam por nos introjetar uma necessidade desnecessária, fazendo-nos crer veementemente que sua realização fática nos trará benefícios.

Freud define o desejo como uma moção psíquica que procura restabelecer a situação da primeira satisfação. Assim, o desejo é a vontade de repor a coisa almejada em um espaço-tempo constante, donde pudéssemos compartilhar de seus benefícios num contato direto entre sujeito cognoscente e objeto cognoscível. Ocorre que o desejo é factual, na medida em que o sujeito já tivera, efetivamente, contato com aquilo que almeja. O desejo não é racional, mas instintivo. Afinal, o busca pelo prazer, tanto físico como metafísico, é um imperativo vital.

Ao contrário, o interesse é viabilizado por nossas relações em sociedade, que nos fazem acreditar na existência de fatos e objetos que, em realidade, são essencialmente falsos, meros factóides e meras ficções. O sistema nos indica a exata medida e dimensão dos nossos desejos, de nossos sonhos, até mesmo daqueles anseios aparentemente mais íntimos.

E embora seja a ilusão aquela que nos motiva ter interesses e senti-los como necessidade – pelo fato de nossos desejos terem fundamento no mentiroso mundo dos prazeres, criado artificiosamente pelo paradigma cultural que o sistema propicia –, nossa necessidade se nos apresenta real, apta a ser sentida. Essa necessidade, que nos é alheia, se torna nossa porque se demonstra sensível.

Disso decorre que o interesse não é instintivo, porque nunca se teve um contato a priori entre o sujeito e o objeto, o que constituiria a relação primordial que o desejo contém. O interesse é racional porque é movido por raciocínios aparentemente lógicos que nossa mente despende ao situar e precisar os beneméritos que certas ficções e certos factóides são capazes de nos gerar.

A ciência é movida por desejos pessoais e interesses sociais. O desejo é privado, enquanto que o interesse é público. Pode parecer ironia aproximar orações que são aparentemente tão discrepantes, mas a distinção acima é necessária para que se afirme que a moral forjada pela ciência foi construída a partir de desejos – cuja motivação tem cunho pessoal – e por interesses – morais, econômicos, sócio-políticos. Todo Direito que é ciência, portanto, segue esta regra.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Há algo de universal em todos nós



Talvez o meu maior objetivo agora, neste trabalho, seja a produção de uma linha de raciocínio que não seja alienada. Por linha de raciocínio alienada quero referir-me ao conjunto de saberes acadêmicos não construído de forma a integrar os saberes humanos numa perspectiva transdisciplinar. O meu maior desejo é comprovar que na atual conjuntura brasileira não há como se falar e se estudar o direito sem especularmos sobre a filosofia e a política. E, por óbvio, a filosofia política, que neste estudo ganha especial relevo.

Fico imaginando quais as sensações tomavam o corpo dos filósofos durante sua produção intelectual, durante o período no qual as impressões que tinham do mundo eram codificadas em linguagem e convertidas em pensamentos, conceitos, métodos de análise. Será que o sucesso desse procedimento reside justamente no fato de conseguirem transmitir sua sensibilidade por meio das palavras? Se isso é verdade, nossa língua é a ponte que nos permite tocar a alteridade, sentindo nosso mundo em sua unicidade difusa.

Há algo de universal em todos nós. E mesmo que nos pensemos indivíduos, alheios ao todo, partes fechadas de uma engrenagem vital, seres cuja identidade os torna únicos, os elementos que contribuíram na constituição de nosso Eu são os mesmos elementos que compõem o mundo, seja a nível orgânico e material, seja a nível metafísico e subjetivo.

A humanidade está correndo pelo nosso corpo. As energias de todos os seres vivos de nosso planeta se entrelaçam para que se transformem, em uma regra que possui algum tipo de lógica divina, sobre a qual apenas nos resta especular. E viver.

Minha vivência tem sido procurar uma identidade em todos nós, a motivação que faz o ser humano construir seu mundo e se permitir definir através de seus atos. A arte e a ciência apenas podem dar certo na medida que nos induzirem a sentir sensações. Não por uma escolha deliberada de nossa parte, os interlocutores da produção artístico-científica, mas pela natural leveza que sentimos ao entender o pensamento de alguém que entende o sistema no qual estamos imersos.

Esse sentimento, que viaja como um esguicho de prazer pela nossa espinha dorsal; o arrepio dos pêlos do corpo e a sensação de se libertar de alguma forma de opressão que não se havia identificado; essa nesga de hormônio liberada em nosso corpo ao ser respeitado o que o cérebro, por seus próprios motivos, ordena e determina – provocar uma sensação é o que faz a arte e a ciência darem certo.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Os sentimentos de Sartre em nós



A primeira coisa sobre a qual refleti hoje ao acordar foi minha postura diante dos últimos acontecimentos. Mais que isso, nos efeitos que o meu procedimento despendeu no mundo, nas pessoas, no sentimento dessas pessoas. Lembrei-me quando Sartre diz, no Existencialismo é um Humanismo, que os sentimentos também são definidos por ações.


Ora, só há como identificarmos um sentimento por alguém a partir do momento que certas atitudes, posturas e escolhas são exercidas de maneira concreta. Os sentimentos, mesmo para quem os sente, não podem ser definidos a priori. Não podemos identificar a pulsão que nos impele a se mover e a agir sem antes nos mover, sem antes agir. A ação, o gesto, os movimentos corporais são justamente a única catarse que o sentimento encontra para irromper no mundo.


Não posso consultar a minha memória, que registrou todas minhas impressões sensoriais, para decidir sobre qual caminho vou percorrer. Percorrendo é que me descubro. Na auto-descoberta é que me percebo amando. Em outras palavras, se sinto uma forma de anseio que viso realizar, mas uma pessoa que me é afeta não concorda com aquilo, o único caminho para que se descubra qual dos dois vou escolher somente pode ser a própria escolha. Por mais que eu já tenha experimentado o sabor e o dissabor que os acontecimentos da vida me causam - isto é, a realização daquele desejo, a presença daquela pessoa - nunca poderei ter por revelado qual deles prefiro antes da própria escolha. Não posso me perguntar “de qual gosto mais” para saber como proceder. É procedendo que descobrirei de qual eu estou gostando mais no presente momento.


É nossa escolha, de maneira essencial, que faz o mundo irromper dentro de nós, debater-se dentro de nós. Na mesma medida, só mesmo a escolha viabiliza o processo no qual o outro vai me captar, me entender, me compreender, me sentir. A ação da escolha faz o mundo irromper em mim e, neste processo, irrompo no mundo. É no olhar e na palavra que descubro o mundo e que me revelo para ele; nunca em exercícios de introspecção consultiva.


Talvez seja isto o que Sartre sentia por existencialismo. Viver sob o leque infinito e transbordante do gesto, das possibilidades que a ação pode viabilizar ou, até mesmo, gerar. A ação é tão fabulosa que é capaz de criar artifícios e seduções de acaso que, no mais das vezes, servem de instrumento para que a dominação seja exercida de forma afetuosa, aceitável, legítima.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Saudades, por Clarice Lispector, ao som de "I see you", tema de Avatar

Saudades

Sinto saudades de tudo que marcou a minha vida.
Quando vejo retratos, quando sinto cheiros,
quando escuto uma voz, quando me lembro do passado,
eu sinto saudades...

Sinto saudades de amigos que nunca mais vi,
de pessoas com quem não mais falei ou cruzei...

Sinto saudades da minha infância,
do meu primeiro amor, do meu segundo, do terceiro,
do penúltimo e daqueles que ainda vou ter, se Deus quiser...

Sinto saudades do presente,
que não aproveitei de todo,
lembrando do passado
e apostando no futuro...

Sinto saudades do futuro,
que se idealizado,
provavelmente não será do jeito que eu penso que vai ser...

Sinto saudades de quem me deixou e de quem eu deixei!
De quem disse que viria
e nem apareceu;
de quem apareceu correndo,
sem me conhecer direito,
de quem nunca vou ter a oportunidade de conhecer.

Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi direito!

Daqueles que não tiveram
como me dizer adeus;
de gente que passou na calçada contrária da minha vida
e que só enxerguei de vislumbre!

Sinto saudades de coisas que tive
e de outras que não tive
mas quis muito ter!

Sinto saudades de coisas
que nem sei se existiram.

Sinto saudades de coisas sérias,
de coisas hilariantes,
de casos, de experiências...

Sinto saudades do cachorrinho que eu tive um dia
e que me amava fielmente, como só os cães são capazes de fazer!

Sinto saudades dos livros que li e que me fizeram viajar!

Sinto saudades dos discos que ouvi e que me fizeram sonhar,

Sinto saudades das coisas que vivi
e das que deixei passar,
sem curtir na totalidade.

Quantas vezes tenho vontade de encontrar não sei o que...
não sei onde...
para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem onde perdi...

Vejo o mundo girando e penso que poderia estar sentindo saudades
Em japonês, em russo,
em italiano, em inglês...
mas que minha saudade,
por eu ter nascido no Brasil,
só fala português, embora, lá no fundo, possa ser poliglota.

Aliás, dizem que costuma-se usar sempre a língua pátria,
espontaneamente quando
estamos desesperados...
para contar dinheiro... fazer amor...
declarar sentimentos fortes...
seja lá em que lugar do mundo estejamos.

Eu acredito que um simples
"I miss you"
ou seja lá
como possamos traduzir saudade em outra língua,
nunca terá a mesma força e significado da nossa palavrinha.

Talvez não exprima corretamente
a imensa falta
que sentimos de coisas
ou pessoas queridas.

E é por isso que eu tenho mais saudades...
Porque encontrei uma palavra
para usar todas as vezes
em que sinto este aperto no peito,
meio nostálgico, meio gostoso,
mas que funciona melhor
do que um sinal vital
quando se quer falar de vida
e de sentimentos.

Ela é a prova inequívoca
de que somos sensíveis!
De que amamos muito
o que tivemos
e lamentamos as coisas boas
que perdemos ao longo da nossa existência...


Clarice Lispector