quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O poder do Direito ou Direito à mercê do poder?



A história nos mostra que a formação política e a configuração jurídica de nossas instituições não se processaram de maneira convencional. A importação crua de teorias e modelos jurídicos tipicamente europeus – nascidos a partir de reverberações sobre uma realidade completamente diferente da nossa – ensejou o surgimento de institutos anômalos, relações jurídicas esdrúxulas e concentração do poder político. Muito embora nossos agentes estatais tenham-se dedicado à tarefa de construir um imenso arcabouço normativo ao longo dos anos, o fato é que as decisões de interesse público continuam circunscritas à esfera do poder.

Algo fica evidente: os criadores e aplicadores do Direito que ocupam os espaços estatais são os principais corruptores do sistema jurídico-legal. Desrespeitam o próprio sentido normativo das disposições constitucionais. Transgridem a projeção ético-política simbolizada no texto de nossa Constituição, tornando a realidade constitucional decrépita e nauseabunda. Nossa própria vivência social e jurídica desatrela-se das condutas fundamentais prescritas na base de nosso ordenamento normativo: não cremos que o direito funcionará, e acabamos por contribuir com a sua vulgarização.

No meio jurídico, os litígios e as disputas realizam-se de maneira mortificada: o conteúdo do processo, a matéria política que necessita negociação e diálogo, o âmago do problema social não é discutido . O conteúdo é substituído pela forma. Os juristas preferem posicionar-se na cômoda posição da técnica, à mercê das manifestações burocráticas do direito positivado. Muito embora responsáveis pela revitalização de nosso entendimento ontológico do Direito, modelando-o de acordo com as demandas sociais e políticas, os juristas recuam a esta tarefa. Preferem a reprodução mecânica e retrógrada, a repetição do mesmo. Propõem acordos de momento que apenas prolongam os problemas que verdadeiramente afligem a população.

No meio político, por sua vez, os litígios e as disputas realizam-se de maneira vivamente anárquica: as matérias políticas que necessitam negociação e diálogo são disputadas pelos agentes estatais inescrupulosamente. Não há um eixo normativo que conduza sua conduta; não há limitações formais ou solenes para as negociações de interesse público. As decisões que atingirão em cheio a vida social de nosso povo são concretizadas mediante expedientes artificiosos, subreptícios, latentes, disfarçados, simbólicos . Os verdadeiros problemas não encontram solução concreta diante de diversos jogos de interesses partidários, trocas de votos, clientelismo. As manobras políticas ocorrem à margem do sistema jurídico-legal, são manobras corruptoras, golpistas, desrespeitosas e desrespeitáveis . A política é feita aquém e além da lei – nunca atrelada a sua vontade normatizadora.

O saldo é apenas um: fica cada vez mais difícil encontrar o “ser” deste Direito. Não há valores incrustados na mente de juristas e agentes estatais como estes. Não há valores na mente de juristas que manejam as Leis como peças de um quebra-cabeça que já sabem estar incompleto. Não há valores na mente de agentes estatais que possuem uma conduta volátil, inconstante, mutável, submissa a anseios individualistas e circunstanciais. Não há valores incrustados na mente daqueles que montam projetos e programas de governo com Leis de papel , com regramentos, regimentos, edifícios normativos inteiros que nunca serão cumpridos, nunca se efetivarão. Edifícios normativos que servem apenas para serem demolidos a qualquer tempo, dando lugar a outros edifícios, como se fossem os brinquedos de um jogo lúdico. Brinquedos – operados não por crianças, mas por agentes intencionados.

Diria Foucault: "O Direito é [...] uma forma regulamentada de fazer guerra" (A verdade e as formas jurídicas)