quarta-feira, 3 de março de 2010

A pausa também faz parte do cotidiano




A pausa também faz parte do cotidiano


Estou estreitando uma relação contigo neste exato instante. Não me ache deselegante pelo simples fato de estar criando este espaço de aproximação unicamente por meio das palavras, e da nossa linguagem, tantas vezes incompreensível e incompreendida. Se assim o faço é porque me encontrei nas circunstâncias que sobraram no mundo – não pude escolhê-las, apenas me descobrir enquanto vivia inserido nelas. Não escolho minhas circunstâncias, mas me descubro ao agir diante delas... Circunstâncias...

Em algum momento, provavelmente neste instante-já, neste pequeno limiar entre meus dedos no teclado e o zinzinar dos seus olhos nas letras, palavras, orações, significações e incursões deste discurso – alguém morre. Mas não pense que isso é uma fatalidade. Na regra natural da existência, as energias se transformam, e neste transformar, agrupam-se de maneira diferente. Seria maçante demais existir apenas nesta forma humanamente encarnada.

É interessante que experimentemos o outro. É natural que definhemos, que nossos órgãos e nossa mente demonstrem-se irremediavelmente exaustos e decepcionados perante as perspectivas adquiridas em vida. Morrer não é o fim, nem por alguns instantes. O mais difícil, nesta conjuntura, não é o ato, ou a omissão, ou a escolha de morrer – mas, ao contrário, aceitar a morte alheia, a morte do outro, daquele que nos é afeto, de nossos amados, de nossos ídolos.

E, no entanto, choremos ou rimos, alguém morreu na frente de minha casa e da sua, ali no asfalto molhado da chuva, quente do sol e sujo da humanidade – ali acabou de morrer um motoqueiro, que era traficante, político, empresário, um pai de família, branco, amarelo, preto, vermelho, caucasiano, oriental, afrodescendente ou apinayé. Morreu, é uma fatalidade cruel, cruelíssima, não para ele, mas pela sua primeira namorada, pelo primeiro filho, e talvez pelo primeiro neto.

Pensar no cotidiano... a morte é tão cotidiana, pensar nela é também tão imensamente cotidiano. Pensar a morte é cotidiano pela constância, pelo repetir-se eternamente no tempo, pelo desejo de um porvir repetido, próximo do idêntico, um devir reflexo do jazer. Estar preso no ciclo do “pensar a morte enquanto se vive” é uma dádiva, direito, façanha, burrice ou esquisitice exclusivamente humana. Nós somos os únicos a despender tempo pensando a morte.

Agora, morreu alguém com um tiro no peito, com cólera, de fome e de sede – o mais dos absurdos – e também de suicídio. As minhas palavras continuam a ser concebidas por movimentos esquisitos dos meus dedos, nossa relação é muito mais íntima, mas nem por isso o sol deixou de secar as gotas da chuva e das lágrimas...

Nesta constância transformadoramente cíclica, teríamos a chance, em alguns momentos crônicos de nosso cotidiano-crônica, de experimentar a pausa do tempo? Digo, naquele arfar de quase-vida-quase-morte, naquela inspiração, inspirada ou expirada, nas epifanias de acaso – será que em algum momento o tempo se concentra num espaço determinado e se barra na sua continuação?

Escute... é o grito de alguém que está sendo torturado. Essa pessoa está morta? Estávamos concebendo uma crônica sobre a presença cotidiana da morte e de repente... Escutou? Nossa, estou todo arrepiado... Os pêlos do corpo se levantam, e isso me parece a catarse de energias angustiantes e asfixiantes, descarregadas em meu corpo em forma de hormônios, pela tão singela captação sonora deste... Ai! O que estarão fazendo com ela? Pois é mesmo um grito de mulher...

Essa pessoa está viva? Pergunto porque, talvez por algumas evidências, morta ela não está. Quando morremos não nos mexemos... o grito também é uma movimentação modificadora, e se ela se movimenta nestes contornos, morta não está... Mas estaria viva, esta mulher? A tortura não mata, mas ao mesmo tempo não deixa viver.

Estaria grávida? Está apavorada, talvez machucada... Arranharam-na, despiram-na, chutaram-na. Depois, estupraram-na. Ejacularam em seus olhos, que são azuis, que já foram objeto de tantos elogios, que já se enamoraram e também se esqueceram e também sofreram a decepção dos que se permitem amar... Azuis, lindos, e eu estou dizendo a verdade, mesmo que se exija esse sentimento de nojo e ojeriza para aceitar essa verdade: ejacularam – e eram seis – em seus olhos azuis...

Agora, a tortura é sim cotidiana.

Um político disse que não podemos deixar de pensar a corrupção sob dois aspectos:

a) primeiro aspecto: a corrupção imediata e direta, isto é, aquele sujeito investido do trato da coisa pública colocar dinheiro nas meias e dizer que é pra comprar panetone;

b) segundo aspecto: a corrupção nas prioridades, ou seja, aquele sujeito investido do trato da coisa pública (que só pôde subir ali onde está porque muitas pessoas, em sua maioria pobres, oprimidas e necessitadas, fizeram um aceno permitindo que subisse) que, em vez de cuidar de alimentação, saúde, trabalho e educação, faz viaduto, faz estátua, faz palácio e dá nome de relevo pro palácio...

Seguraram seus cabelos, ali na proximidade da nuca, e puxaram com muita força em direção ao chão... Sentada e algemada com os braços por trás das costas era um animalzinho indefeso. Sujo de sangue. Seu próprio sangue, e sangue de dois ou três cabos. Aqueles cabos eram todos casados com mulheres, lindas, feias, burguesas e cosméticas, solícitas ou vagabundas. Casados, afetivos, mas ali em seu trabalho eles eram um pouco mais rústicos, secos, frios e frígidos, maldosos, impiedosos e desgraçados. Desagraciados. A graça, ali naquele momento, jamais lhes recairia...

Ela estava suja de excremento também. Fezes, urina, cuspe. Os cabos podem ser alemães, estadunidenses ou brasileiros. Tanto faz, todos são filhos da puta e torturadores. Não digo que eles mereçam a morte, porque a morte é um presente, mas que o melhor seria mesmo aniquila-los a todos, pra que evitemos de coexistir com a maléfica presença da tortura e de torturadores.

Encostaram-lhe o cano do revólver na nuca, era gélido, metálico, escuro, mas tudo estava escuro, e o pavor era muito mais aterrorizante no escuro. Apenas houvera claridade no momento do estupro – tudo o que foi feito antes e depois foi realizado na escuridão apavorante que a inexistência da visão produz.

Pense que ela estava sendo torturada por ser comunista, por ter idéias, ideais e ideologias que visam modificar drasticamente o sistema-mundo no qual vivemos. Pense que ela estava sendo torturada por ser também uma torturadora nazista, na época em que Hitler centralizou o ódio do mundo, e esta tortura era o seu castigo, a sua sanção, a sua pena.

Pense que ela estava sendo torturada apenas na ficção das minhas palavras. Pense que ela estava sendo torturada como forma de retratar a tortura sofrida por você, mulher. Pense que ela estava sendo torturada para representar o grito de todos os torturados gritando concomitantemente juntos, unidos por um ideal de revolta, na repudia e no amargo sentimento de complacência para produzir uma luta lutada com paz, com o exemplo que a paz produz, e não com mais ódio.

Pense que ela estava sendo torturada apenas para que lembremos, numa crônica, que a tortura é cotidiana. Pense que Maria Isabela viveu cinco mil anos de existência em apenas cinco horas de tortura. Que hoje vive, mas que por cinco horas não viveu. Nem morreu.

A história de Maria Isabela parou o tempo, o nosso e o dela.