Demorei pra perceber muitas coisas na
vida. Demorei a curtir uma boa música. Mas quando descobri o rock, não teve
volta. Depois veio o samba, o jazz – percebi que a vida sem música era
barulhenta. Ao contrário, com a música conseguimos sentir o silêncio dos nossos
sentidos. Demorei pra perceber como a mudez, num ambiente de música agradável,
desnuda as sensações de felicidade que tentamos ocultar por timidez. As músicas
garantem os sorrisos, a atração dos corpos, os passos de dança, o suor
misturado e a nova tentativa de recriar um sentido para a vida.
Demorei pra perceber que a beleza está
em lugares secretos e misteriosos. Lugares por vezes indescritíveis. O belo, a
potência que ele nos estimula e revela, o encanto desejante: o belo nos dá a
exata noção de nossa falta perante o mundo. O belo desenha o vazio do humano
perante o mundo que escapa, cotidianamente, de suas mãos. É no belo que o ser
humano esvaziado aprende a desejar. É no belo que o ser humano se percebe, ao
mesmo tempo, fraco e fortalecido, egoísta e generoso. Há algo de singularmente
belo no simples. A simplicidade possui um sabor que lhe segreda a potência num
mistério inenarrável.
Demorei pra perceber a importância da
cumplicidade entre os amigos. Demorei pra entender que a amizade não é
interessante enquanto uma corporação instituída e sempre instituível. A amizade
guarda sua força instituinte nos movimentos espontâneos das subjetividades que
se encontram. A força da amizade é sua capacidade espontânea de aproximar os
corpos. A amizade é uma biofísica, questão fundamental para que se repensem as
teorias políticas todas. Já que é mania da ciência bem comportada anular o
afeto que marca a superfície de seus objetos.
Demorei pra perceber que arte não é uma
técnica, mas uma convulsão. Só concebo o artista como um revolucionário, o que
me implica a conceber o revolucionário apenas como um artista. E há artistas
suficientes para alimentar os desígnios do bem ou do mal, isto é, qualquer
poder faz arte. Vejo diante de mim Banksy, grafiteiro inglês, quando decidiu
desenhar a cor da vida nos muros de Israel. Naquele dia, Banksy realizou um projeto:
elevou a importância de sua arte à importância mesma de sua vida. Desafiou sua
existência mundana e a presença da morte naquele território belígero, quando os
judeus assaltaram a cultura dos palestinos. Em meio a tantos homens armados com
metralhadoras, treinados para atirar em todo e qualquer detalhe que atente
contra a ordem vigilante, Banksy desafia a sensibilidade do mundo: coloca uma
escada gigantesca e confere brilho ao monocratismo que o ódio e a guerra
impõem. Banksy se tornou um nome revolucionário justamente pelo seu anonimato.
Sua atuação nos faz lembrar que nosso cotidiano está repleto de artistas
revolucionários (pleonasmo!), ocultados pelas relações de dominação da
sensibilidade, controle social dos corpos e gestão ideológica dos desejos. A
verdade é que a política serve para anular a arte.
Demorei pra entender a importância do
mar. Das árvores. Dos animais, sobretudo os pequeninos. Demorei pra perceber
que tudo se trata de perspectiva. E aprendi a olhar com olhos novos, porque
livres. Ver com olhar livre. Ser humano na liberdade concreta da terra, da
fruta, do cultivo ecológico, da economia lidibinal dos corpos, da felicidade do
convívio respeitoso com a mãe natural. A importância do gênero feminino, a
importância do ser mais fraco, a necessidade de proteção e guarida ecológica
àqueles ameaçados de aniquilação, a doçura emocional que as práticas
conscientes geram no mundo. Cada cor de cada flor é um movimento heurístico. O
sentido do mundo ou da vida está para ser lançado a cada novo golpe das
incertezas históricas. Num pequeno gesto de amor reside a violência mais
brutal. O atentado mais vigoroso contra as estruturas é subverter os seus pressupostos.
A maior agressão contra a insensibilidade cotidiana é o abraço compartilhado. É
por isso que o artista é um revolucionário: a arte violenta de Gandhi foi
demonstrar que a brutalidade pode ser subvertida e deteriorada pelo gesto de
pacificação. Gandhi foi muito mais violento que Hitler, na melhor acepção
possível: agrediu a torpeza do sistema com a atitude corajosa do amor.
Demorei muito para entender que amar
significa antes de tudo ser forte e, na sequência, estar disposto a testar os
próprios limites. O amor recoloca na agenda existencial a pauta do vazio, da
falta, do sentimento intenso de incompletude. A descoberta do amor é a
descoberta de que não somos seres autossuficientes. Amar é esquecer por um
momento que se existe e se morre e que nesta ilação não reside sentido que o
valha. O amor desconecta para reconectar em outra instância de comunicação
semântica. Amar é se deixar transfigurar. O amor é a trama que põe os corpos
dos seres em mutação. Com um detalhe: não há retornos, nem progressos, apenas a
heurística do rompimento. Amar é perceber que o outro rompe o que somos, rompe nossos
obstáculos, rompe nossa cadeia desejante, transgridem nossos projetos
sintomaticamente bem acabados, fazendo despertar o artista ou revolucionário
que todos e cada um de nós estamos habilitados a ser.
Demorei pra entender que estar
consciente das minhas faltas e das faltas do povo é a conscientização política
por excelência, que só assim permite uma existência engajada na luta contra a
dominação dos seres humanos. Se há por aí quem diga que os próprios sujeitos
são criação interessada, então a luta deve ser pela libertação da mundanidade
orgânica dos povos, seja lá qual subjetividade ou sujeito lhes esteja incutido.
E não importando a boa ou má-fé do ser dominado, lembrar sempre, e em última
instância, que todos merecem ser constantemente libertados de todas as opressões.
Mais que isso: o vocabulário e o calendário da dominação estão longe de perder
atualidade.
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