sábado, 16 de junho de 2012

Demorei...




Demorei pra perceber muitas coisas na vida. Demorei a curtir uma boa música. Mas quando descobri o rock, não teve volta. Depois veio o samba, o jazz – percebi que a vida sem música era barulhenta. Ao contrário, com a música conseguimos sentir o silêncio dos nossos sentidos. Demorei pra perceber como a mudez, num ambiente de música agradável, desnuda as sensações de felicidade que tentamos ocultar por timidez. As músicas garantem os sorrisos, a atração dos corpos, os passos de dança, o suor misturado e a nova tentativa de recriar um sentido para a vida.

Demorei pra perceber que a beleza está em lugares secretos e misteriosos. Lugares por vezes indescritíveis. O belo, a potência que ele nos estimula e revela, o encanto desejante: o belo nos dá a exata noção de nossa falta perante o mundo. O belo desenha o vazio do humano perante o mundo que escapa, cotidianamente, de suas mãos. É no belo que o ser humano esvaziado aprende a desejar. É no belo que o ser humano se percebe, ao mesmo tempo, fraco e fortalecido, egoísta e generoso. Há algo de singularmente belo no simples. A simplicidade possui um sabor que lhe segreda a potência num mistério inenarrável.

Demorei pra perceber a importância da cumplicidade entre os amigos. Demorei pra entender que a amizade não é interessante enquanto uma corporação instituída e sempre instituível. A amizade guarda sua força instituinte nos movimentos espontâneos das subjetividades que se encontram. A força da amizade é sua capacidade espontânea de aproximar os corpos. A amizade é uma biofísica, questão fundamental para que se repensem as teorias políticas todas. Já que é mania da ciência bem comportada anular o afeto que marca a superfície de seus objetos.

Demorei pra perceber que arte não é uma técnica, mas uma convulsão. Só concebo o artista como um revolucionário, o que me implica a conceber o revolucionário apenas como um artista. E há artistas suficientes para alimentar os desígnios do bem ou do mal, isto é, qualquer poder faz arte. Vejo diante de mim Banksy, grafiteiro inglês, quando decidiu desenhar a cor da vida nos muros de Israel. Naquele dia, Banksy realizou um projeto: elevou a importância de sua arte à importância mesma de sua vida. Desafiou sua existência mundana e a presença da morte naquele território belígero, quando os judeus assaltaram a cultura dos palestinos. Em meio a tantos homens armados com metralhadoras, treinados para atirar em todo e qualquer detalhe que atente contra a ordem vigilante, Banksy desafia a sensibilidade do mundo: coloca uma escada gigantesca e confere brilho ao monocratismo que o ódio e a guerra impõem. Banksy se tornou um nome revolucionário justamente pelo seu anonimato. Sua atuação nos faz lembrar que nosso cotidiano está repleto de artistas revolucionários (pleonasmo!), ocultados pelas relações de dominação da sensibilidade, controle social dos corpos e gestão ideológica dos desejos. A verdade é que a política serve para anular a arte.

Demorei pra entender a importância do mar. Das árvores. Dos animais, sobretudo os pequeninos. Demorei pra perceber que tudo se trata de perspectiva. E aprendi a olhar com olhos novos, porque livres. Ver com olhar livre. Ser humano na liberdade concreta da terra, da fruta, do cultivo ecológico, da economia lidibinal dos corpos, da felicidade do convívio respeitoso com a mãe natural. A importância do gênero feminino, a importância do ser mais fraco, a necessidade de proteção e guarida ecológica àqueles ameaçados de aniquilação, a doçura emocional que as práticas conscientes geram no mundo. Cada cor de cada flor é um movimento heurístico. O sentido do mundo ou da vida está para ser lançado a cada novo golpe das incertezas históricas. Num pequeno gesto de amor reside a violência mais brutal. O atentado mais vigoroso contra as estruturas é subverter os seus pressupostos. A maior agressão contra a insensibilidade cotidiana é o abraço compartilhado. É por isso que o artista é um revolucionário: a arte violenta de Gandhi foi demonstrar que a brutalidade pode ser subvertida e deteriorada pelo gesto de pacificação. Gandhi foi muito mais violento que Hitler, na melhor acepção possível: agrediu a torpeza do sistema com a atitude corajosa do amor.

Demorei muito para entender que amar significa antes de tudo ser forte e, na sequência, estar disposto a testar os próprios limites. O amor recoloca na agenda existencial a pauta do vazio, da falta, do sentimento intenso de incompletude. A descoberta do amor é a descoberta de que não somos seres autossuficientes. Amar é esquecer por um momento que se existe e se morre e que nesta ilação não reside sentido que o valha. O amor desconecta para reconectar em outra instância de comunicação semântica. Amar é se deixar transfigurar. O amor é a trama que põe os corpos dos seres em mutação. Com um detalhe: não há retornos, nem progressos, apenas a heurística do rompimento. Amar é perceber que o outro rompe o que somos, rompe nossos obstáculos, rompe nossa cadeia desejante, transgridem nossos projetos sintomaticamente bem acabados, fazendo despertar o artista ou revolucionário que todos e cada um de nós estamos habilitados a ser.

Demorei pra entender que estar consciente das minhas faltas e das faltas do povo é a conscientização política por excelência, que só assim permite uma existência engajada na luta contra a dominação dos seres humanos. Se há por aí quem diga que os próprios sujeitos são criação interessada, então a luta deve ser pela libertação da mundanidade orgânica dos povos, seja lá qual subjetividade ou sujeito lhes esteja incutido. E não importando a boa ou má-fé do ser dominado, lembrar sempre, e em última instância, que todos merecem ser constantemente libertados de todas as opressões. Mais que isso: o vocabulário e o calendário da dominação estão longe de perder atualidade.

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