Quando fumo
Acendo um
cigarro. Não sou eu, porque não fumo. Se acendi o cigarro, falo de outro. Este outro
acende um cigarro e admira uma imundície qualquer jogada no chão. Costume
universal: ser sujo e sujar a tudo, independentemente da ideologia. Pura
porcaria. Devo estar remoendo um passado que está morto. Alguma parte dele que
eu fiz questão de assassinar. Na dinâmica do tempo, não somos vítimas nem réus.
Somos sempre parte atuante: a omissão torna-se uma ação tola.
Nunca me
omito. Já paguei caro por isso. Mas prefiro confabular linguagem para cara
parte do mundo que me falta. Faltando, crio a todas. Isso faz alguns rirem. A
outras pessoas, causa dores. No fim, todos temos a indiferença como a maior
arma. Lembro sempre de amores passados que me frustraram. Um sentimento reativo
de vingança, uma vontade louca de enfiar a mão na cara daquele que elegemos
como culpado em holograma mental. Nossa imaginação é capaz disso: montar
personagens virtuais. Que não existem em lugar algum fora de nossas cabeças.
Este céu, acima da minha cabeça, talvez não exista. Olho-o com a mesma
indiferença com que sou contemplado por alguém que também acendeu seu cigarro.
O cigarro
serve para isto: celebrarmos nossa indiferença quanto à torpeza do mundo.
Confesso que
odeio cigarro, mas preciso dele pra viver. O cheiro do cigarro é o pior. Não
fumo dentro de casa: se fumasse, não seria eu. Se fumo cigarro já não sou, se
fumo dentro de minha própria sala, duplamente deixo de ser. Mas o que importa
para a ciência e a para a política, no fim, é isto mesmo: captar o que não é.
Aquele, aquela, quem ou qual ou quanto não é, deixa de ser. O mendigo, o
otário, a louca, o fodido e o desempregado: algo neles não é para que algo fora
deles conquiste o magnânimo direito de ser. A realidade é que todos nós somos coisa
nenhuma: a diferença é entre quem sabe disso e quem o nega. Quem o nega tem a
louca gana de expandir o eu. A expansão do eu é a pior das faces da
pós-modernidade: demonstra que o projeto moderno ainda tem vigência. Não fosse
o cigarro, e o tempo que ele disfarçadamente me confere na idiotice cotidiana,
não poderia fazer minhas reflexões. Refletir é uma bosta: sou feliz quando
consigo não pensar.
Pensar serve
para isto: modelos mentais criados para celebrarmos juntos nossa infelicidade
da vida. Compartilhar algo, e não ter nada melhor que compartilhar que um mesmo
inconformismo impotente para com a vida. E então acendo outro cigarro. Vejo
Flavia. E já não sei se é ela pessoalmente ou se é uma projeção mental minha.
Aliás, mesmo quando Flavia está de verdade em minha presença, concretamente, sinto
que a vejo inevitavelmente enquanto minha projeção. Há algo de saboroso nisso
tudo: o sabor vai do doce ao amargor. Flavia está ali mesmo, agora é sério. Ela
também acendeu um cigarro. Cara, que delícia! Fico medindo cada milímetro de um
lábio cujo sabor me escapa. Nem sei, há uma graça peculiar em não saber nada,
estar perdido numa emoção original e radical, que vem da origem e se afunda na
raiz. A raiz é a mão divina da planta – todos temos de nos agarrar a algo. Nossas
mãos expressam esta emoção sem precedente.
Flavia pousa
as mãos no parapeito. Suas mãos tomam o muro como uma raiz, na mesma graça. Mas
sei que ela – Flavia – e ele – o muro – não querem estabelecer relação tão
íntima. Ela olha e me acena, seu cigarro queima levemente, e de longe só posso
ver sua fumaça. Sua brasa fica dentro de mim, do meu peito e da minha
imaginação furtiva. Lembro de um desgosto qualquer, de tanto filho da puta que
eu conheci na vida. Lembro que sou também um filho da puta pra muita gente. E
trago bem fundo um cigarro indiferente. Afinal, eu não fumo. Devo estar
apaixonado. Porque tudo para – o tempo,
o espaço e o nada – e conservo em minha lembrança, em slow motion, os lábios de Flavia se abrirem, de novo e novamente,
para a próxima tragada. No interstício de um intervalo, me congelo e me
resvalo, e sinto em mim o lábio superior de Flavia grudando pontualmente no
lábio inferior, e atrasando alguns milésimos a abertura completa.
Abrir a boca
serve pra isso mesmo: celebrar para o mundo a graça e o torpor que andam unidos
dentro de nossos corpos.
Flavia fica
me olhando. Às vezes ficamos assim simulando um ao outro personagens que
encenam uma peça teatral de indiferença. Personagens com seus cigarros, sua autonomia
reciprocamente notada ou notável. Olhamo-nos de canto, e num golpe sensual
completamente improvisado, quedamos numa postura, numa posição corpórea assim
ou assada. E meu corpo inflama, sensualizado pela perturbação que os gestos de
outro ser humano causam em meu sistema inteiro. Num momento, toda a náusea e o
nojo do existir no mundo da vida suspende-se numa nuvem. De fumaça, talvez.
Estamos ambos fumando, eu e Flavia – embora eu não fume. A vida desintegra-se
enquanto semântica, perdendo todos seus sentidos (fabricados) novamente. O
significado, instável em sua estabilidade disfarçada, é agredido pelo poder
totalitário do referente, da última conotação, da última metáfora bem feita, da
última ironia, do último neologismo talvez – eles nos reinauguram para na
sequência nos aniquilarem e novamente reinaugurar.
Tudo muda de
sentido. E o efeito dos sentidos, quando perenizam em significado, conceito
duro, engessado, é devastador. Tudo que dizemos não é nosso. Não há propriedade
intelectual sobre nada: dita, a palavra é autônoma e desenvolve-se como quer –
caoticamente. Meu corpo vira um caos. Reflito tudo e esqueço que meu boneco,
esta matéria orgânica acumulada num espaço-tempo específico, precisa reagir ao
mundo. Precisa movimentar-se, encenar-se, produzir-se. Reflito tudo, fico
parado, fora de mim, esqueço onde estou e, num relâmpago, Flavia já vem em
minha direção. As personagens que fumam se foram. Meu cigarro acabou e nem notei.
Acabou também a indiferença. A minha e a dela. A encenada e a factual. É um
giro linguístico no mundo emocional. Alguma notícia de jornal que não será
lida.
Abrimos
sorrisos imensos um ao outro. E eu penso como sou idiota em gastar minha
energia libidinal com gente tola e intransigente. Como sou estupidamente
metafísico em deixar passar os belos momentos simples da beleza de um lugar
ameno e bucólico. E me entrego a um senso moral liberto de mágoas e preparado
para desejar o novo. Assim me pertenço. É no sorriso que compartilho que me
descubro. O outro contorna o sentido do meu ser nos pequenos gestos. Escuto a
voz de Flavia, e tudo vira um grande redemoinho. Imagino, num lapso, um homem
numa crônica especial. É um homem que, desacreditado, sai caminhando. E que se
decide por caminhar até esquecer tudo aquilo que não tem o menor interesse.
Continuar caminhando e insistindo no esquecimento de nossos documentos, de
nossas vitórias, de nossas mágoas, de nossas angústias, de todos os lugares
lindos e horríveis em que estivemos, das falhas, da autopenitência moral, da
vontade de vomitar que existir causa.
Este homem
para a caminhada. Não sabe onde está. Perdeu-se. Não sabe voltar. Toca a
campainha, atende uma vizinha querida. Mas ele não sabe o que pedir, não lembra
nenhum número de telefone, nenhum endereço e nenhum nome. Desconcertado, pensa
em pedir água, mas não tem sede. Não está morto, de fato. Mas algo pereceu e
algo ascendeu. Ele está aberto ao novo, livre porque não cristalizou nenhuma
emoção e nenhum pensamento. Quero ser como esse homem e não me permitir perenizar
em conceitos estanques, títulos acadêmicos, feitos financeiros, malandragens
faceiras, besteiras e mitos, brincadeiras imbecis e palavrório abestalhado.
Tudo volta, como num ralo, mas sem o cheiro do ralo.
- O locão, abre os olhos!
E como quem
volta de um sonho longínquo, retorno.
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