quarta-feira, 6 de junho de 2012

Quando fumo





Quando fumo

            Acendo um cigarro. Não sou eu, porque não fumo. Se acendi o cigarro, falo de outro. Este outro acende um cigarro e admira uma imundície qualquer jogada no chão. Costume universal: ser sujo e sujar a tudo, independentemente da ideologia. Pura porcaria. Devo estar remoendo um passado que está morto. Alguma parte dele que eu fiz questão de assassinar. Na dinâmica do tempo, não somos vítimas nem réus. Somos sempre parte atuante: a omissão torna-se uma ação tola.

            Nunca me omito. Já paguei caro por isso. Mas prefiro confabular linguagem para cara parte do mundo que me falta. Faltando, crio a todas. Isso faz alguns rirem. A outras pessoas, causa dores. No fim, todos temos a indiferença como a maior arma. Lembro sempre de amores passados que me frustraram. Um sentimento reativo de vingança, uma vontade louca de enfiar a mão na cara daquele que elegemos como culpado em holograma mental. Nossa imaginação é capaz disso: montar personagens virtuais. Que não existem em lugar algum fora de nossas cabeças. Este céu, acima da minha cabeça, talvez não exista. Olho-o com a mesma indiferença com que sou contemplado por alguém que também acendeu seu cigarro.

            O cigarro serve para isto: celebrarmos nossa indiferença quanto à torpeza do mundo.

            Confesso que odeio cigarro, mas preciso dele pra viver. O cheiro do cigarro é o pior. Não fumo dentro de casa: se fumasse, não seria eu. Se fumo cigarro já não sou, se fumo dentro de minha própria sala, duplamente deixo de ser. Mas o que importa para a ciência e a para a política, no fim, é isto mesmo: captar o que não é. Aquele, aquela, quem ou qual ou quanto não é, deixa de ser. O mendigo, o otário, a louca, o fodido e o desempregado: algo neles não é para que algo fora deles conquiste o magnânimo direito de ser. A realidade é que todos nós somos coisa nenhuma: a diferença é entre quem sabe disso e quem o nega. Quem o nega tem a louca gana de expandir o eu. A expansão do eu é a pior das faces da pós-modernidade: demonstra que o projeto moderno ainda tem vigência. Não fosse o cigarro, e o tempo que ele disfarçadamente me confere na idiotice cotidiana, não poderia fazer minhas reflexões. Refletir é uma bosta: sou feliz quando consigo não pensar.

            Pensar serve para isto: modelos mentais criados para celebrarmos juntos nossa infelicidade da vida. Compartilhar algo, e não ter nada melhor que compartilhar que um mesmo inconformismo impotente para com a vida. E então acendo outro cigarro. Vejo Flavia. E já não sei se é ela pessoalmente ou se é uma projeção mental minha. Aliás, mesmo quando Flavia está de verdade em minha presença, concretamente, sinto que a vejo inevitavelmente enquanto minha projeção. Há algo de saboroso nisso tudo: o sabor vai do doce ao amargor. Flavia está ali mesmo, agora é sério. Ela também acendeu um cigarro. Cara, que delícia! Fico medindo cada milímetro de um lábio cujo sabor me escapa. Nem sei, há uma graça peculiar em não saber nada, estar perdido numa emoção original e radical, que vem da origem e se afunda na raiz. A raiz é a mão divina da planta – todos temos de nos agarrar a algo. Nossas mãos expressam esta emoção sem precedente.

            Flavia pousa as mãos no parapeito. Suas mãos tomam o muro como uma raiz, na mesma graça. Mas sei que ela – Flavia – e ele – o muro – não querem estabelecer relação tão íntima. Ela olha e me acena, seu cigarro queima levemente, e de longe só posso ver sua fumaça. Sua brasa fica dentro de mim, do meu peito e da minha imaginação furtiva. Lembro de um desgosto qualquer, de tanto filho da puta que eu conheci na vida. Lembro que sou também um filho da puta pra muita gente. E trago bem fundo um cigarro indiferente. Afinal, eu não fumo. Devo estar apaixonado. Porque tudo para – o  tempo, o espaço e o nada – e conservo em minha lembrança, em slow motion, os lábios de Flavia se abrirem, de novo e novamente, para a próxima tragada. No interstício de um intervalo, me congelo e me resvalo, e sinto em mim o lábio superior de Flavia grudando pontualmente no lábio inferior, e atrasando alguns milésimos a abertura completa.

            Abrir a boca serve pra isso mesmo: celebrar para o mundo a graça e o torpor que andam unidos dentro de nossos corpos.

            Flavia fica me olhando. Às vezes ficamos assim simulando um ao outro personagens que encenam uma peça teatral de indiferença. Personagens com seus cigarros, sua autonomia reciprocamente notada ou notável. Olhamo-nos de canto, e num golpe sensual completamente improvisado, quedamos numa postura, numa posição corpórea assim ou assada. E meu corpo inflama, sensualizado pela perturbação que os gestos de outro ser humano causam em meu sistema inteiro. Num momento, toda a náusea e o nojo do existir no mundo da vida suspende-se numa nuvem. De fumaça, talvez. Estamos ambos fumando, eu e Flavia – embora eu não fume. A vida desintegra-se enquanto semântica, perdendo todos seus sentidos (fabricados) novamente. O significado, instável em sua estabilidade disfarçada, é agredido pelo poder totalitário do referente, da última conotação, da última metáfora bem feita, da última ironia, do último neologismo talvez – eles nos reinauguram para na sequência nos aniquilarem e novamente reinaugurar.    

            Tudo muda de sentido. E o efeito dos sentidos, quando perenizam em significado, conceito duro, engessado, é devastador. Tudo que dizemos não é nosso. Não há propriedade intelectual sobre nada: dita, a palavra é autônoma e desenvolve-se como quer – caoticamente. Meu corpo vira um caos. Reflito tudo e esqueço que meu boneco, esta matéria orgânica acumulada num espaço-tempo específico, precisa reagir ao mundo. Precisa movimentar-se, encenar-se, produzir-se. Reflito tudo, fico parado, fora de mim, esqueço onde estou e, num relâmpago, Flavia já vem em minha direção. As personagens que fumam se foram. Meu cigarro acabou e nem notei. Acabou também a indiferença. A minha e a dela. A encenada e a factual. É um giro linguístico no mundo emocional. Alguma notícia de jornal que não será lida.

            Abrimos sorrisos imensos um ao outro. E eu penso como sou idiota em gastar minha energia libidinal com gente tola e intransigente. Como sou estupidamente metafísico em deixar passar os belos momentos simples da beleza de um lugar ameno e bucólico. E me entrego a um senso moral liberto de mágoas e preparado para desejar o novo. Assim me pertenço. É no sorriso que compartilho que me descubro. O outro contorna o sentido do meu ser nos pequenos gestos. Escuto a voz de Flavia, e tudo vira um grande redemoinho. Imagino, num lapso, um homem numa crônica especial. É um homem que, desacreditado, sai caminhando. E que se decide por caminhar até esquecer tudo aquilo que não tem o menor interesse. Continuar caminhando e insistindo no esquecimento de nossos documentos, de nossas vitórias, de nossas mágoas, de nossas angústias, de todos os lugares lindos e horríveis em que estivemos, das falhas, da autopenitência moral, da vontade de vomitar que existir causa.

            Este homem para a caminhada. Não sabe onde está. Perdeu-se. Não sabe voltar. Toca a campainha, atende uma vizinha querida. Mas ele não sabe o que pedir, não lembra nenhum número de telefone, nenhum endereço e nenhum nome. Desconcertado, pensa em pedir água, mas não tem sede. Não está morto, de fato. Mas algo pereceu e algo ascendeu. Ele está aberto ao novo, livre porque não cristalizou nenhuma emoção e nenhum pensamento. Quero ser como esse homem e não me permitir perenizar em conceitos estanques, títulos acadêmicos, feitos financeiros, malandragens faceiras, besteiras e mitos, brincadeiras imbecis e palavrório abestalhado. Tudo volta, como num ralo, mas sem o cheiro do ralo.

            - O locão, abre os olhos!

            E como quem volta de um sonho longínquo, retorno.

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