A neurociência e a
biologia da cognição a serviço da epistemologia descolonial
Athanis Rodrigues
Mestrando pelo programa de pós-graduação em Direito da
UFSC
Em sua obra
“Muito além do nosso eu”, o neurocientista Miguel Nicolelis antevê,
utopicamente, um futuro não muito distante em que a interação cérebro-máquina
em interfaces virtuais possibilitará a libertação de nossa mente pensante das
limitações orgânicas de nosso corpo físico. Em outras palavras, propõe que a
neurociência pode funcionar como agente de transformação social, no momento em
que a união entre cérebro e máquinas pode mudar nossas vidas e nossas relações
humanas, sociais e afetivas.
Dentre as
inovações da neurociência, incluem-se neuropróteses corticais instaladas no
sistema nervoso central, possibilitando que os impulsos eletro-magnéticos de
nossos cérebros enviem sinais motores para máquinas robóticas acopladas em
nossos corpos, como se efetivamente fossem seus membros. Com esta tecnologia,
pessoas que sofrem de paralisia poderão recuperar a mobilidade corpórea. Não
obstante, há ainda um exoesqueleto de corpo inteiro, a ser utilizado pelo
projeto “Andar de novo”, amostra do Dr. Gordon Cheng, da Universidade Técnica
de Munique. De sua parte, Nicolelis tem empreendido projetos na cidade de
Natal, no estado do Rio Grande do Norte, de modo a possibilitar a educação de
comunidades carentes. Assim, o ambicioso Campus do Cérebro, parte do Instituto
Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, inclui a criação
de uma escola pública de ensino integral, viabilizando um projeto
político-pedagógico inspirado na união das ideias de Paulo Freire e Alberto
Santos Dumont (p. 486).
Entretanto, a
anunciação mais impressionante da obra parece mesmo ser a “brainet”, uma nova
rede mundial de comunicação intersubjetiva em interfaces virtuais, que
possibilitará a comunicação de vastas populações humanas sem que necessitemos
escrever ou pronunciar, oralmente, uma só palavra. Em outras palavras, a
comunicação ocorreria por meio único e exclusivo de nossos pensamentos,
atingindo em cheio o atual sistema midiático capitalista que, monopolizando as
informações tecno-científicas e político-econômicas, impede que o acesso a
informação se desenrole de maneira efetivamente democrática.
No mesmo
sentido, a biologia da cognição de Maturana e Varela, em sua obra “Àrvore do
conhecimento”, bem como “Os passos para uma mente ecológica”, de Gregory
Bateson, fornecem elementos para construirmos a teoria do conhecimento humano,
gerando, por conseqüência, uma nova forma de perceber o mundo que nos rodeia.
Neste sentido, a obra destes biólogos e antropólogos, unidas aos avanços da
neurociência atestados por Nicolelis e Cheng, geram implicações numa seara de
crucial importância para as ciências humanas: a epistemologia, ramo específico da filosofia que trata das formas
segundo as quais o ser humano vai conhecer seu próprio mundo – exterior e, por
que não dizer também, interior.
Não se trata de
misticismo ou ficção científica: os avanços tecnológicos na interação
cérebro-máquina a partir de interfaces virtuais, vai gerar uma nova forma de
relacionamento humano, social e afetivo, exigindo, para tanto, novos paradigmas
éticos e políticos. Em razão destas descobertas, o presente trabalho intenta averiguar
quais seriam suas contribuições para um novo ramo de epistemologia que tem
emergido do pensamento de teóricos e filósofos latinoamericanos, indianos e
africanos: a epistemologia descolonial.
O termo epistemologia descolonial refere-se a
uma nova forma de encarar as relações socioeconômicas, políticas e culturais
entre os países do Norte do planeta e aqueles do Sul. Ateste-se, neste
desiderato, que o período colonial ainda não terminou, apenas adquiriu novas
facetas, reorganizando-se a partir das novas divisões internacionais do
trabalho. Neste sentido, vivemos num período pós-colonial. O jurista Eugênio Raul Zaffaroni, ministro da Suprema
Corte argentina, já dissera, há alguns anos, que vivemos num período de tecno-colonialismo, no qual a dominação e
colonização socioeconômica e política deram lugar a uma nova forma de controle
dos países de economia mais fraca, por meio da monopolização dos avanços
tecnológicos.
Neste sentido,
as inovações trazidas pelos biólogos e neurocientistas supracitados fornece
subsídios para discutirmos a “descolonização da subjetividade”, expressão
utilizada por outro pensador do descolonialismo, Walter Mignolo: seria o caso
de perguntarmos, por exemplo, como uma interface virtual de comunicação
intersubjetiva como a brainet possibilitaria novas formas de mobilização
popular, organização política e relacionamento social. Como serão as novas
“primaveras dos povos”, períodos de mobilização de massas que realizam
revoluções culturais, com o advento destas novas tecnologias? É perseguindo as
respostas para perguntas como essa que o presente trabalho se concretiza.
REFERÊNCIAS
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Clacso, 2003.
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NICOLELIS, Miguel; NICOLELIS,
Giselda Laporta. Muito além do nosso eu: a nova neurociência
que une cérebro e máquinas e como ela pode mudar nossas vidas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
WALSH, Catherine; MIGNOLO, Walter; GARCIA
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Buenos Aires: Del Signo, 2006.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de
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