sábado, 1 de setembro de 2012

A neurociência e a biologia da cognição a serviço da epistemologia descolonial




A neurociência e a biologia da cognição a serviço da epistemologia descolonial

Athanis Rodrigues
Mestrando pelo programa de pós-graduação em Direito da UFSC

         Em sua obra “Muito além do nosso eu”, o neurocientista Miguel Nicolelis antevê, utopicamente, um futuro não muito distante em que a interação cérebro-máquina em interfaces virtuais possibilitará a libertação de nossa mente pensante das limitações orgânicas de nosso corpo físico. Em outras palavras, propõe que a neurociência pode funcionar como agente de transformação social, no momento em que a união entre cérebro e máquinas pode mudar nossas vidas e nossas relações humanas, sociais e afetivas.

         Dentre as inovações da neurociência, incluem-se neuropróteses corticais instaladas no sistema nervoso central, possibilitando que os impulsos eletro-magnéticos de nossos cérebros enviem sinais motores para máquinas robóticas acopladas em nossos corpos, como se efetivamente fossem seus membros. Com esta tecnologia, pessoas que sofrem de paralisia poderão recuperar a mobilidade corpórea. Não obstante, há ainda um exoesqueleto de corpo inteiro, a ser utilizado pelo projeto “Andar de novo”, amostra do Dr. Gordon Cheng, da Universidade Técnica de Munique. De sua parte, Nicolelis tem empreendido projetos na cidade de Natal, no estado do Rio Grande do Norte, de modo a possibilitar a educação de comunidades carentes. Assim, o ambicioso Campus do Cérebro, parte do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, inclui a criação de uma escola pública de ensino integral, viabilizando um projeto político-pedagógico inspirado na união das ideias de Paulo Freire e Alberto Santos Dumont (p. 486).

         Entretanto, a anunciação mais impressionante da obra parece mesmo ser a “brainet”, uma nova rede mundial de comunicação intersubjetiva em interfaces virtuais, que possibilitará a comunicação de vastas populações humanas sem que necessitemos escrever ou pronunciar, oralmente, uma só palavra. Em outras palavras, a comunicação ocorreria por meio único e exclusivo de nossos pensamentos, atingindo em cheio o atual sistema midiático capitalista que, monopolizando as informações tecno-científicas e político-econômicas, impede que o acesso a informação se desenrole de maneira efetivamente democrática.

         No mesmo sentido, a biologia da cognição de Maturana e Varela, em sua obra “Àrvore do conhecimento”, bem como “Os passos para uma mente ecológica”, de Gregory Bateson, fornecem elementos para construirmos a teoria do conhecimento humano, gerando, por conseqüência, uma nova forma de perceber o mundo que nos rodeia. Neste sentido, a obra destes biólogos e antropólogos, unidas aos avanços da neurociência atestados por Nicolelis e Cheng, geram implicações numa seara de crucial importância para as ciências humanas: a epistemologia, ramo específico da filosofia que trata das formas segundo as quais o ser humano vai conhecer seu próprio mundo – exterior e, por que não dizer também, interior.

         Não se trata de misticismo ou ficção científica: os avanços tecnológicos na interação cérebro-máquina a partir de interfaces virtuais, vai gerar uma nova forma de relacionamento humano, social e afetivo, exigindo, para tanto, novos paradigmas éticos e políticos. Em razão destas descobertas, o presente trabalho intenta averiguar quais seriam suas contribuições para um novo ramo de epistemologia que tem emergido do pensamento de teóricos e filósofos latinoamericanos, indianos e africanos: a epistemologia descolonial.

         O termo epistemologia descolonial refere-se a uma nova forma de encarar as relações socioeconômicas, políticas e culturais entre os países do Norte do planeta e aqueles do Sul. Ateste-se, neste desiderato, que o período colonial ainda não terminou, apenas adquiriu novas facetas, reorganizando-se a partir das novas divisões internacionais do trabalho. Neste sentido, vivemos num período pós-colonial. O jurista Eugênio Raul Zaffaroni, ministro da Suprema Corte argentina, já dissera, há alguns anos, que vivemos num período de tecno-colonialismo, no qual a dominação e colonização socioeconômica e política deram lugar a uma nova forma de controle dos países de economia mais fraca, por meio da monopolização dos avanços tecnológicos.

         Neste sentido, as inovações trazidas pelos biólogos e neurocientistas supracitados fornece subsídios para discutirmos a “descolonização da subjetividade”, expressão utilizada por outro pensador do descolonialismo, Walter Mignolo: seria o caso de perguntarmos, por exemplo, como uma interface virtual de comunicação intersubjetiva como a brainet possibilitaria novas formas de mobilização popular, organização política e relacionamento social. Como serão as novas “primaveras dos povos”, períodos de mobilização de massas que realizam revoluções culturais, com o advento destas novas tecnologias? É perseguindo as respostas para perguntas como essa que o presente trabalho se concretiza.


REFERÊNCIAS


LANDER, Edgardo (Compilador). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2003.
MATURANA, Humberto R.,; MAGRO, Cristina; PAREDES, Victor. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
MATURANA, Humberto R.,; VARELA G., Francisco.A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Psy II, 1995.
MIGNOLO, Walter. Epistemic disobedience, independent thought and de-colonial freedom. In: Theory, Culture & Society. Los Angeles, London, New Delhi, and Singapore: SAGE, 2009. V. 26. p. 1-23.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: Unesco; 2000.
NICOLELIS, Miguel; NICOLELIS, Giselda Laporta. Muito além do nosso eu: a nova neurociência que une cérebro e máquinas e como ela pode mudar nossas vidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
WALSH, Catherine; MIGNOLO, Walter; GARCIA LINERA, Álvaro.   Interculturalidad, descolonización del Estado y del conocimiento. Buenos Aires: Del Signo, 2006.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

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